Alcântara

Corte de Direitos Humanos ouve quilombolas sobre instalação de centro espacial: ‘Tudo arrancado de nós’

Centenas de famílias foram removidas para criação de uma base de lançamento de foguetes em Alcântara, no Maranhão

Reprodução/YouTube
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Corte Interamericana terá dois dias de audiência sobre caso de Alcântara: Estado brasileiro em julgamento

São Paulo – No primeiro dia da audiência pública envolvendo o Estado brasileiro e comunidades quilombolas de Alcântara (MA), a Corte Interamericana de Direitos Humanos ouviu relatos de moradores removidos para instalação de uma base aeroespacial. A denúncia foi apresentada em 2001, ainda à Comissão Interamericana, e depois de considerada admissível passou por instâncias e e procedimentos. Em janeiro do ano passado chegou à Corte, que vai julgar o caso.

Segundo a denúncia, a criação da base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB) resultou em violações contra as comunidades que habitavam a região. Com impacto em vários aspectos – cultural, de alimentação, saúde. O Estado também teria se omitido na concessão de títulos de propriedade definitiva.

O projeto foi iniciado nos anos 1970, e na década seguinte foram atingidas 312 famílias de 32 povoados. Alcântara, na região metropolitana de São Luís, é área de concentração de comunidades quilombolas.

Audiência vai prosseguir

Seis entidades assinam a denúncia. São o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), a organização Justiça Global, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (Fetaema), o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Alcântara e a Defensoria Pública da União (DPU). A audiência prosseguirá amanhã (27). Ainda não há data para o julgamento.

‘Eu nasci na comunidade e a gene tinha uma vida feliz, a gente tinha tudo com fartura’, conta Maria Luzia, que se emocionou (Foto: Reprodução/YouTube)

Na primeira parte da audiência, que está sendo realizada no Chile, juízes e representantes das partes ouviram Maria Luzia, do povoado de Marudá, em longo depoimento, às vezes interrompido pelo choro. “Eu nasci na comunidade e a gente tinha uma vida feliz, a gente tinha tudo com fartura. Não precisava de outras coisas para viver. Morava numa casa humilde, tapada de barro, palha e folha de babaçu. Depois a gente passou a ter muito problemas. Foi lá que nossos pais nasceram, os ancestrais deles também. Foi muito difícil aceitar a mudança.”

Sair de Alcântara “para passar fome”

Ela contou que os moradores viviam do extrativismo. “A fonte de renda das mulheres era o babaçu. Os homens trabalhavam na produção da roça e na pesca. E isso foi arrancado de nós. (…) É difícil ver nosso povo desesperado, chorando, sem dormir.” Os quilombolas foram removidos para agrovilas, segundo Maria sem a devida estrutura.

“Fomos lá passar fome. Não aceito, porque dói. Porque lá (na comunidade original) nós tinha peixe, fruta, babaçu, nós tinha tudo. A gente deixou tudo pra trás.” Assim, ainda segundo o relato, muitas pessoas foram morar na periferia de São Luís, por falta de condições de sobrevivência. As novas moradas não tinham praia para a pesca, nem terra boa para plantar. Também vieram problemas de saúde. “A gente se tratava mesmo na comunidade, com remédio caseiro”, conta Maria Luzia, filha de pajé.

“O pedido de titulação das terras está em aberto antes mesmo da denúncia e o processo está pronto para assinatura do Executivo Federal desde 2008, sem, no entanto, qualquer sinalização de encaminhamento, o que compromete ainda mais a garantia das formas tradicionais de organização e vida. As comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares em 2004 e identificadas e delimitadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2008”, diz a DPU.