Sistema de injustiça

Condenações em crimes famélicos revelam ‘afã punitivista’ e elitismo

Doutor em criminologia, Reinaldo Santos de Almeida critica a denúncias e condenações que ignoram o princípio da insignificância

Paulo Pinto / Fotos Públicas
Paulo Pinto / Fotos Públicas
Sem políticas públicas adequadas, avanço da miséria aumenta ocorrências de furtos de comida

São Paulo – Em entrevista ao jornalista Glauco Faria no Jornal Brasil Atual desta segunda-feira (1º), o advogado criminalista e professor Reinaldo Santos de Almeida, doutor em Criminologia e Direito Penal, comenta o aumento de recursos e habeas corpus contra acusados de cometerem crimes famélicos, isto é, roubos motivados pela pobreza e pela fome. Ele lamentou que as instâncias inferiores, ao defenderem a continuidade desses processos, não estejam servindo como filtro contra esse tipo de ação. Nesse sentido, o especialista atribui esse “afã punitivista” ao elitismo dominante entre magistrados e membros do Ministério ´Público, além de uma formação jurídica insuficiente.

Na semana passada, chamou atenção um caso ocorrido no Rio Grande do Sul, em que o Ministério Público recorreu da decisão que absolveu dois homens que furtaram alimentos vencidos do setor de descartes de um supermercado. O episódio ocorreu em 2019, e a Justiça havia decidido pelo “princípio da insignificância”.

“Se determinada conduta não realiza lesão significativa a esse bem jurídico, não caracteriza crime nos termos dogmáticos penais”, explica o jurista. “No caso, estamos falando de lixo, alimentos vencidos. Portanto, sequer estavam na esfera jurídica do estabelecimento comercial. E que não têm nenhum valor econômico. De modo que não há como falar de lesão a um bem jurídico que fundamente justa causa para um processo de natureza criminal”, completou.

Elitismo

Em outro caso recente, uma mãe foi acusada pelos procuradores de furtar refrigerante, suco industrializado e macarrão instantâneo de um supermercado em São Paulo. Também nesse caso foi considerado o princípio da insignificância, já que a soma do valor de venda dos produtos era de apenas R$ 21,69. Na falta de “empatia e sensibilidade” por parte dos acusadores, o próprio argumento economicista já seria suficiente para afastar esse tipo de acusação, segundo Almeida.

Para ele, ações como essas são retrato da composição elitista do Ministério Público e de parcela dos magistrados. Há outros casos equivalentes de sentenças que foram derrubadas em instâncias superiores. Além disso, até mesmo o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já derrubou condenações em casos similares. “É uma questão estrutural, que tem relação com o próprio ensino jurídico e com o perfil social de quem compõe essas carreiras típicas do Estado e exercem o poder punitivo”, afirmou o jurista. “Pessoas que recebem salários de até 50 mil reais julgam outras pessoas que vivem na rua”, ressaltou.

A solução, segundo ele, passa por políticas afirmativas que alterem a composição racial e social dos membros do ministério Público e do sistema de Justiça.

Criminalização da pobreza

Contestadas, do ponto de jurídico, ações por crimes famélicos representam custos ao sistema de Justiça, que precisa mobilizar investigadores, acusadores, defensores e juízes. Esses agentes deixam, então, de dar a devida atenção a casos mais graves – como homicídio, latrocínio, estupro etc. Nesses casos, frisa o advogado, aí sim os bens jurídicos são atacados de modo efetivo.

No entanto, segundo Almeida, condenações que criminalizam a pobreza são “funcionais” ao atual sistema econômico. “De certo modo, isso garante uma sociedade injusta. Criminaliza-se, inclusive, situações extremas, em que não há qualquer valor ou proveito econômico dos itens subtraídos. Simplesmente para reforçar a ideologia dominante do trabalho e da ‘meritocracia’. Alegam que as pessoas devem estar integradas ao sistema econômico, mesmo quando temos altíssimos índices de desemprego, de falta de moradia, de pessoas que estão em situação de desespero.

Assista à entrevista

Redação: Tiago Pereira