'Somos livres'

Com Nobel e artistas, campanha busca manter conceito de trabalho escravo

Comissão e MPT se organizam para evitar mudanças na legislação que interpretam como retrocesso no combate à prática. Entidades criticam projeto e querem mobilizar a sociedade

reprodução/facebook/caioborges

A campanha propõe lembrar o pior dia de trabalho da vida de cada um, comparando às situações de trabalho escravo

São Paulo – A Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e o Ministério Público do Trabalho (MPT) abriram uma ofensiva para evitar mudanças no conceito de trabalho escravo previsto no Código Penal. Na visão das entidades e ativistas de direitos humanos, o Projeto de Lei do Senado (PLS 432) representa um retrocesso, ao retirar alguns itens que caracterizam legalmente o trabalho escravo. O lançamento da campanha Somos Livres, na tarde de hoje (28) – dia nacional de combate à prática –, em São Paulo, contou com o apoio do indiano Kailash Satyarthi, Prêmio Nobel da Paz em 2014, que elogiou a legislação brasileira sobre o tema, “uma das mais progressistas do mundo, que define o trabalho escravo em todos os seus aspectos”.

Artistas também reforçam a campanha, cujos detalhes podem ser vistos no site www.somoslivres.org. O ator Wagner Moura, que atua como “embaixador” da Organização Internacional do Trabalho (OIT), gravou um vídeo com um depoimento, e a atriz Camila Pitanga, diretora-geral do Movimento Humanos Direitos, foi a apresentadora do evento. O objetivo é familiarizar o público com o tema, a partir da constatação de que o trabalho escravo é um problema reconhecido na sociedade, mas nem sempre com as informações necessárias.

Pesquisa da Ipsos para a organização não-governamental Repórter Brasil, também divulgada hoje, ajudou na formulação da campanha. “A sociedade quer a erradicação do trabalho escravo, contudo não conhece a gravidade e a extensão do trabalho escravo contemporâneo”, diz o jornalista Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG.

De 1.200 pessoas ouvidas em 72 municípios, 70% disseram acreditar que o trabalho escravo ainda existe, 17% afirmaram que não, 12% não souberam responder e 1% não responderam. À pergunta sobre o que caracterizava o problema, boa parte citou questões não relacionadas ao trabalho escravo, como remuneração baixa e horas extras. Além disso, observou Sakamoto, as pessoas que menos têm conhecimento são justamente as mais vulneráveis.

A campanha propõe que cada pessoa procure se lembrar do pior dia de trabalho de sua vida, comparando às situações de trabalho escravo e fazendo com que o público se familiarize com situações de abuso. Wagner Moura, por exemplo, conta dos problemas que teve em um dia de gravação, mas acrescenta que mesmo nesse dia não faltou acesso a água potável, comida, banheiro limpo, e ele não foi forçado a ficar ou agredido.

Liberdade

“Não é campanha contra o trabalho escravo, mas a favor da liberdade”, diz a procuradora Christiane Vieira Nogueira, do MPT. Segundo ela, a mobilização acontece em um momento de ameaça de retrocesso legal. “O trabalho escravo contemporâneo não se restringe à violação da liberdade, mas da dignidade,” afirma, manifestando preocupação com a possível retirada de alguns preceitos, como jornada exaustiva e condições degradantes, que caracterizam a prática.

Para o secretário especial de Direitos Humanos e presidente da Conatrae, Rogério Sottili, o desafio é “manter o país como exemplo de combate ao trabalho escravo e de legislação avançada”, barrando retrocessos. Mesmo reconhecendo o avanço conservador no Congresso, ele observa que há muitos parlamentares comprometidos com a agenda de direitos humanos, que ajudarão a “articular contra quem quer retroceder”. Segundo Sottili, a presença do Nobel da Paz no evento é um reconhecimento das ações feitas no Brasil.

“Temos um mecanismo mundialmente conhecido para combater o trabalho escravo, e resultados positivos para mostrar”, acrescentou a subprocuradora-geral do Trabalho, Sandra Lia Simón, chamando a atenção para a presença de “forças conservadoras e retrógradas” que buscam o retrocesso.

“A consciência de um crime é o primeiro passo para mudar”, afirmou Kailash Satyarthi, para quem a pobreza é causa e consequência do trabalho escravo. “Mudanças na economia que afetam a dignidade humana vão contra o desenvolvimento e a civilização”, criticou, também se referindo a empresas que exploram o trabalho de baixo custo. “Como podemos influenciar esse mundo corporativo?”, questionou Kailash.

Outro fator que move o trabalho é a ganância, “a busca incessante por lucro”, avalia o coordenador nacional do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT no Brasil, Luiz Antonio Machado. A estimativa da organização é de que 21 milhões de pessoas em todo o mundo são submetidas a trabalho forçado, sendo 1,8 milhão na América Latina e no Caribe. Ele lembra que nem todas as denúncias conseguem ser apurados e chamou de “heroicos”, os grupos móveis de fiscalização que atuam no Brasil desde 1995. Nesse período, até 2015, quase 50 mil trabalhadores foram resgatados de situações análogas às de escravidão.

Elaborado pela Comissão Mista de Consolidação das Leis e Regulamentação da Constituição, o PLS 432 foi aprovado em 2014. Está na ordem do dia para votação.

Fórum

Na próxima segunda-feira (1º), será instalado o Comitê Nacional Judicial do Fórum Nacional para o Monitoramento e Solução das Demandas Atinentes à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas, conforme resolução do Conselho Nacional de Justiça. Com dez membros, o comitê será responsável pela organização do funcionamento do fórum e pela coordenação nos estados.

Segundo o ministro Lelio Bentes Corrêa, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o objetivo é “contribuir para uma ação judicial efetiva” de combate a essas práticas. Presente ao ato que lançou a campanha “Somos Livres”, ele observou que este foi o primeiro ano, após a chacina de 2004, em que se pôde celebrar a condenação dos mandantes.