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Ativista contra o racismo, Cláudio Silva será o novo ouvidor de polícia no estado de São Paulo

Novo ouvidor tem em sua memória inúmeros casos de violência policial vividos por parentes, amigos, correligionários, militantes e garante que sua gestão será marcada pelo diálogo com as corporações e o governo

Igor Carvalho / BdF
Igor Carvalho / BdF
Cláudio Silva, conhecido como Claudinho, será o ouvidor das polícias de São Paulo pelos próximos dois anos

Brasil de Fato – No próximo dia 6 de fevereiro, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, em um ato simbólico, movimentos sociais empossarão o novo chefe da Ouvidoria de polícias de São Paulo, Cláudio Silva, conhecido como Claudinho. O gesto oferece uma dimensão da expectativa criada por defensores de direitos humanos na gestão do novo ouvidor, que oficialmente já exerce as funções do cargo.

Claudinho chega ao posto aos 46 anos, no início do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Freitas, o primeiro governador paulista que não é do PSDB em 28 anos, entregou a estrutura da Secretaria de Segurança Pública às forças policiais, nomeando Guilherme Derrite, policial militar da reserva, para o comando da pasta. O delegado-geral da Polícia Civil Oswaldo Nico foi escolhido como seu adjunto, o que gerou receio entre especialistas da área de avanço da letalidade policial no estado.

Entre as promessas de campanha, Freitas dizia que retiraria as câmeras das fardas de policiais militares, com apoio de Derrite, agora secretário de seu governo. Com duas semanas no Palácio dos Bandeirantes, o governador foi obrigado a recuar.

Para Cláudio Silva, o recuo, motivado pela pressão dos movimentos sociais, foi um acerto. “A posição da Ouvidoria é mais que defender, é de cobrar a ampliação para toda a Polícia Militar. Em seguida, que as câmeras cheguem até os policiais civis e polícia científica.”

Cláudio Silva terá que lidar com Derrite, que defendeu a letalidade policial como método de trabalho e que já pediu a extinção do órgão. “Ele fez declarações duras em relação a Ouvidoria e os direitos humanos, mas não devemos desistir de trazer para o diálogo uma pessoa que tem apenas 38 anos de idade”, afirmou o ouvidor, lembrando a pouca idade do novo secretário.

Trajetória

Filiado ao PT desde 1998, Silva garante que não irá se desfiliar do partido para aliviar o tom das críticas daqueles que acham que ele irá “politizar o cargo”. Ele começou seu trabalho na legenda em campanhas de candidatos a deputado federal e estadual.

No PT, foi secretário nacional de Combate ao Racismo durante sete anos e trabalhou na Secretaria de Abastecimento, durante a gestão de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo, em 2022. De 2019 a 2021, dirigiu o SOS Racismo, serviço da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) que acolhe denúncias de crimes raciais.

Foi na Prefeitura de São Paulo que se aproximou do hip-hop, mais especificamente de Afro-X e Dexter, integrantes do 509-E. Antes, na década de 1990, o estilo musical já tinha cruzado seu caminho quando se aproximou do movimento negro, após um caso de racismo dentro de uma delegacia.

Entre a infância e a juventude, Silva trabalhou oito anos como engraxate. No trajeto que fazia todos os dias procurando clientes, estava uma parada na 11ª Delegacia de Polícia, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Lá, engraxava os sapatos de alguns investigadores e escrivães.

Em uma dessas ocasiões, após sujar a meia de um investigador, ouviu uma pessoa que passava no corredor o atacar. “Nem para isso essa raça serve”, disse o racista. “Aquilo ficou plantado na minha cabeça e, semanas depois, andando pela rua eu vi um panfleto jogado no chão, do MNU (Movimento Negro Unificado), da campanha ‘Mano, não morra e não mate’. Aí eu decidi ir na reunião, que acontecia na sede do Sindicato dos Radialistas, ali na Bela Vista”, lembra Silva.  

Nas reuniões do MNU, conheceu Mano Brown, KL Jay e Edi Rock, integrantes do Racionais Mcs. “Ali, eu fui criando consciência e entendendo o que tinha acontecido na delegacia. Então, fui me envolvendo com a questão negra e entendendo que eu tinha um problema de identidade.”

O novo ouvidor das polícias tem em sua memória inúmeros casos de violência policial vividos por parentes, amigos, correligionários, vizinhos, militantes, entre outros. E Silva tem sua própria história para contar.

Quando era um garoto em situação de rua, no bairro da Penha, em Vitória (ES), foi preso por desacato ao exigir que um policial cumprisse seu dever, após procurá-lo por ter seu dinheiro roubado por outras crianças.

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O ouvidor garante que sua gestão será marcada pelo diálogo com as corporações e o governo.  “Eu acho que tem caminho para a gente salvar a política de segurança pública em São Paulo e no Brasil através do diálogo. É mais fácil bater e esculachar como eles fazem com a gente na periferia? É, mas nós temos outra postura.”

Confira a entrevista na íntegra

O que você espera do seu mandato à frente da Ouvidoria? Há muita expectativa sobre sua gestão.

Eu também tenho muitas expectativas, espero que consigamos fazer o trabalho que a Ouvidoria tem como missão fazer, que é colaborar para a promoção da Justiça, para que as pessoas tenham acesso à Justiça e que consigamos interagir com as forças policiais no estado, que contribua para qualificar a entrega da política pública de Segurança Pública para a população. É lógico que eu sei que estar aqui não é algo tranquilo, nem pode ser tranquilo. Não apenas nesse espaço, mas todo espaço de poder exige constante vigilância, eu tenho um compromisso muito consolidado com os movimentos sociais.

Como foi sua relação com a polícia na vida?

Eu tive dois momentos conflituosos com a polícia. Quando era criança, eu morava na rua e tive um desentendimento com um policial que não quis cumprir sua função. Na cabeça daquele policial, um menino de rua pedindo dinheiro era um cidadão de menos valor, não merecia atenção. Eu fui roubado por outros meninos de rua, fui reclamar e ele virou as costas. Eu mandei ele para um lugar e ele mandou outros policiais me prenderem. Aí, fui levado para a Fesbem (Fundação Espírito-Santense do Bem-Estar do Menor).

O outro foi ainda adolescente, eu engraxava sapatos em São Paulo e meus primeiros clientes eram os policiais do 11º DP e eles me ajudavam muito. Lá, tinha o Ferreira, que era o chefe dos investigadores e cuidava de mim. Foram oito anos engraxando os sapatos dele e criamos uma relação de afeto. Um dia, naquele lugar, eu descobri o racismo. Eu estava engraxando o sapato do Ferreira e ele reclamou que eu tinha sujado a meia, uma pessoa que eu nunca tinha visto na delegacia passou no corredor e disse “nem para isso essa raça serve”. Aquilo ficou plantado na minha cabeça e, semanas depois, andando pela rua eu vi um panfleto jogado no chão, do MNU (Movimento Negro Unificado), da campanha “Mano, não morra e não mate”, aí eu decidi ir na reunião, que acontecia na sede do Sindicato dos Radialistas, ali na Bela Vista.

Como eram essas reuniões logo após da ditadura?

Era 1989 ou 1990. Essas reuniões me abriram o horizonte e aconteciam de quinta-feira, que era o melhor dia para mim, porque eu não conseguia engraxar muitos pares de sapato, uns dois no máximo. O KL Jay frequentava as reuniões com o Edi Rock, o Brown aparecia de vez em quando. Ali, eu fui criando consciência e entendendo o que tinha acontecido na delegacia. Então, fui me envolvendo com a questão negra e entendendo que eu tinha um problema de identidade. Quando eu começo a ser puxado para a militância, eu percebo como minha autoestima estava lesionada pelo racismo.

O governo já recuou da retirada das câmeras nas fardas. Qual é a posição da Ouvidoria?

A posição da Ouvidoria é mais que defender, é de cobrar a ampliação para toda a Polícia Militar. Em seguida, que as câmeras cheguem até os policiais civis e polícia científica.

Eu soube de casos em que pessoas que fizeram denúncias anônimas à Ouvidoria tiveram suas identidades reveladas. O senhor já sabe o quanto isso é comum?

Nós sabemos que isso acontece. As pessoas que trabalham nas áreas meio da Ouvidoria são muito antigas aqui e extremamente referendadas. As minhas chefes de jurídico e de expediente são confiáveis e supercompetentes, possuem 27 e 28 anos de Ouvidoria. Essas pessoas não atuam dessa forma e confiamos em seu trabalho. De qualquer forma, estamos trabalhando na construção de um protocolo de atendimento para disciplinar como a denúncia deve ser recebida e tratada internamente. É um trabalho delicado e sabemos que precisamos ter muito cuidado com as informações que chegam aqui.

O que achou de Tarcísio de Freitas ter entregue a SSP às polícias?

Historicamente, sabemos que sempre houve um esforço dos governos para colocar no comando da Secretaria de Segurança Pública pessoas que não pertençam a nenhuma das polícias. É muito comum que fossem promotores, o Antônio Ferreira Pinto, Saulo de Castro Abreu Filho e Alexandre de Moraes são alguns. Com essa movimentação, percebemos que há um desequilíbrio em relação a essa tradição e isso gerou vários questionamentos, de pessoas que fazem o debate sobre segurança pública. Até hoje, não havia nenhum caso de um policial militar ocupar esse cargo. Houve incômodo na Polícia Militar também, muita gente do alto-comando questionou o fato de um coronel bater continência para um capitão. Bom, essa nomeação causou muito mal estar.

Como espera que seja a sua relação com Derrite?

Eu tive dois encontros com o Derrite até agora. Em ambos encontros ele foi muito cordial. O primeiro foi uma visita de cortesia, assim que assumi, ele me recebeu bem. Ele disse que pretende ter uma relação de diálogo e que a Ouvidoria cumpra sua missão. O outro encontro foi na segunda-feira após a tentativa de golpe e fomos para o comitê de crise, no comando da polícia e ao chegar lá ele me chamou imediatamente para a sala e passou todo o relato do que seria feito pela Secretaria de Segurança Pública pretendia fazer para desmobilizar os acampamentos. Até o momento, nossa relação tem sido republicana.  

Derrite disse ser a favor da letalidade policial e queria o fim das ouvidorias.

Eu acho que quem ocupar o espaço que ele ocupa hoje, se tiver o minímo de inteligência, vai entender que a Ouvidoria é o espaço de legitimação da política de segurança pública do estado, ela é um espaço importante e necessário. Se a Ouvidoria deixar de existir, afastará ainda mais a população e os movimentos sociais da segurança pública. Eu defendo que a gente, a mídia também, calcula a segurança pública como defesa de patrimônio, mas a segurança pública tem que cuidar das pessoas. Muitas vezes, a relação da polícia com a população mais carente é trágica porque quando a polícia entra, todo mundo já falhou, a comunidade, a escola, a família, a Saúde, o Conselho Tutelar, todo mundo falhou. Eu não acho que a Ouvidoria tem que ser ocupada por alguém que seja inimigo das polícias, pois perderíamos a condição de mediação. Então, eu acho que a Ouvidoria tem esse papel importante de mediação, eu não vou bloquear o debate e não sou inimigo da polícia. O que farei é ser implacável é com quem descumpre a lei e o regimento, com esse cara serei implacável. Mas eu não posso ser implacável com toda a corporação por esse sujeito que não cumpre a lei e o regimento. Eu acho que tem caminho para a gente salvar a política de segurança pública em São Paulo e no Brasil através do diálogo. É mais fácil bater e esculachar como eles fazem com a gente na periferia? É, mas nós temos outra postura. O Derrite fez declarações duras em relação a Ouvidoria e os direitos humanos, mas não devemos desistir de trazer para o diálogo uma pessoa que tem apenas 38 anos de idade.