Em São Paulo

Justiça ordena reabertura de serviço social na Cracolândia. Covas diz que vai recorrer

Conselho Nacional dos Direitos Humanos avalia posição da administração como ‘irresponsável e vergonhosa’. Último espaço que oferecia alimentação e higiene às pessoas em situação de rua foi fechado em meio à pandemia

Jornal GGN/Reprodução
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"O que a prefeitura faz na prática é uma promoção de violação dos direitos humanos", critica Leonardo Pinho

São Paulo – O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou, na tarde da quarta-feira (08), o imediato restabelecimento das atividades da unidade II de Atendimento Diário Emergencial, (Atende), pela prefeitura de São Paulo. O único equipamento municipal que ainda oferecia alimentação e condições básicas de higiene às pessoas em situação de rua e em uso de substâncias psicoativas na área conhecida como Cracolândia, região central da capital paulista, havia sido fechado horas antes pela gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB), apesar da cidade ser epicentro da pandemia de coronavírus

Baseada na emergência sanitária do país e da importância do serviço social “que concentra uma grande parte de pessoas vulneráveis”, a juíza Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda Pública, proibiu, em decisão liminar (provisória),  o fechamento do Atende 2, acatando a ação civil pública ingressada na terça (07) pela Defensoria Pública de São Paulo. “Caso já tenha se iniciado o fechamento, as atividades deverão ser, por ora, restabelecidas”, ordenou a magistrada.

Criado no âmbito do programa Redenção, o Atende 2, na avaliação dos defensores que assinaram a ação, oferece os serviços mínimos para atender às necessidades básicas da população que vive em situação de rua na região do bairro da Luz, centro da capital paulista, e que estão expostas ao risco de contágio da Covid-19. 

Segundo o site da prefeitura, pelo menos 300 pessoas são atendidas no espaço diariamente. O município, no entanto, sob a justificativa de impedir aglomeração no local, fechou-o na manhã desta quarta e transferiu a população usuária para o Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (Siat) II, no Glicério, também no centro da cidade, inaugurado no mesmo dia. O novo espaço opera com 100 vagas a menos, e tem uma capacidade diária para 200 pessoas, com atendimento prioritário, segundo a prefeitura, aos remanescentes da região da Luz. 

Em nota à RBA, a prefeitura afirmou que vai recorrer da decisão liminar do TJ-SP. “O Siat II – Glicério atende todos os requisitos de Direitos Humanos e oferece melhor atendimento no acolhimento e no tratamento da saúde de usuários de álcool e drogas em situação de vulnerabilidade. O novo equipamento é para salvar vidas.”, alega a administração. 

Vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Leonardo Pinho avalia a posição do governo municipal como “simplesmente irresponsável e vergonhosa”. “O que nós estamos precisando da prefeitura é que ela seja pró-ativa. Não estamos em um momento de normalidade, essa ideia ‘vou recorrer na Justiça’ é uma resposta burocrática para um problema real de pessoas que estão em situação de rua e em situação de vulnerabilidade”, afirma.

De acordo com o vice-presidente do CNDH, ainda que judicialmente o órgão público não tenha cometido nenhuma ilegalidade em passar por cima do trâmite da ação da Defensoria, já da perspectiva dos direitos humanos, a gestão Covas deveria ter pelo menos atendido ao princípio de cautela para avaliar qual seria o posicionamento da Justiça. Pinho destaca que a atuação do executivo municipal deveria ser pela ampliação de medidas de acolhimento.

“O que a prefeitura faz na prática é uma promoção de violação dos direitos humanos, tirando o que está dado pela Justiça, o único equipamento público daquela região”, ressalta. 

Aglomerados nos ônibus 

Organizações da sociedade civil que atuam na região, como o coletivo A Craco Resiste, o Centro de Convivência É de Lei e a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, também repudiaram o fechamento do Atende 2. À reportagem, a coordenadora geral do É de Lei, Maria Angelica Comis, relatou uma série de preocupações, principalmente com as centenas de pessoas que ficaram desassistidas pela ação da prefeitura. 

“O poder público não conseguiu estratégias. Muitas das pessoas que estão em uso mais intenso (de drogas) dificilmente vão procurar um serviço distante do território onde ela faz o consumo da substância”, criticou. Ontem, logo após o fechamento, as cenas de usuários aglomerados para entrar no ônibus que os levaria ao Siat II, a pouco mais de três quilômetros distantes, chamou a atenção dos especialistas. 

“Era para evitar a aglomeração (o fechamento do Atende 2), e eles foram todos aglomerados dentro do ônibus”, acusou o médico psiquiatra Flávio Falcone, ativista por direitos humanos do coletivo A Craco Resiste

A prefeitura alegou que foram distribuídas máscaras, mas, segundo Falcone, só elas não são suficientes. “Do ponto de vista de saúde, o transporte foi inadequado e o serviço continua inadequado. Inclusive o Atende 2 era um lugar muito inadequado do ponto de vista sanitário e de saúde, mas eles podiam lavar a roupa, lavar as mãos, tinham três torneiras que eles tinham acesso livre e agora não tem nenhuma torneira na região inteira”, contesta.

“Esse é um processo que já vem em andamento, que é o processo de especulação imobiliária. Eles querem limpar o Centro ‘daqueles pobres’ para (ser ocupado pela) classe média e a elite. Esse é o grande projeto que está por trás de tudo isso, na verdade”, aponta o psiquiatra.

O único serviço público no local é a polícia 

Uma hora após o encerramento da “transferência”, a Ponte Jornalismo verificou que o chamado fluxo – movimentação de uso e venda de drogas mais intensa – já retornava à rua Helvétia, endereço do Atende 2.

Maria Angélica chegou a alertar para a continuidade da chamada cena de uso, que seguiria, “só que agora com nenhuma outra iniciativa do poder público para garantir a qualidade de vida dos indivíduos”, ressaltou. Mesmo o local do programa estadual de João Doria (PSDB), o Recomeço, que oferece senhas para que as pessoas possam tomar banho, por exemplo, amanheceu fechado nesta quarta, como permaneceu também hoje (quinta-feira). 

A reportagem procurou por três vezes a Secretaria de Desenvolvimento Social, mas não obteve resposta. A expectativa, de acordo com Falcone, é que o serviço seja normalizado na segunda-feira (13). Até lá, a população da região não terá nenhum outro espaço para higiene, com todos fechados.

“Só tem a polícia na rua. É o único serviço público que está presente no local nesse momento e eles têm autorização para dispensar aglomerações. Estamos muito receosos com o que pode acontecer”, teme o ativista. 

Na noite, logo após a desativação do Atende 2, um morador da região, conhecido pelo apelido Meia-Noite, contou, em entrevista ao jornalista Bruno Torturra, do canal Estúdio Fluxo, que as agressões policiais estão aumentando nas últimas semanas. 

“Estamos precisando de ajuda. Está sem lei nas ruas, não tem lei para eles e para nós”, afirmou apontando para um machucado próximo à boca. “Estamos sem lei aqui, o negócio está feio para nós. Temos medo deles ‘tacarem’ fogo em nós. Agora com o fechamento do Atende eu vejo com uma opressão, um desastre, porque tem muita gente doente”, lamentou. 

Suspeitas de covid-19 

Pouco antes do fechamento do serviço municipal,  o corpo de um homem foi encontrado, por volta das 7h, na rua Helvetia. A Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP) confirmou o óbito por meio de nota. 

De acordo com a pasta, um agente da GCM disse que o corpo não apresentava sinais de violência ou agressão física, e que foi solicitado exames periciais e de identificação ao IML. Falcone, que já atuou no Recomeço, conta que tem informações de que a vítima teria 33 anos e estava em tratamento irregular de tubercoluse, e que há suspeitas de que ela tenha sido infectada pelo novo coronavírus. 

Para o psiquiatra, a situação expõe a vulnerabilidade da população. “E agora, essa e a próxima semana, são, na curva, as piores fases de transmissão (do coronavírus), principalmente dos assintomáticos, que transmitem o vírus.”

As próximas medidas

Na ausência do poder público, os movimentos e ONGs articulam campanhas de doação de itens de higiene e insumos. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos também afirma que está pressionando a prefeitura para que ela cumpra a decisão da Justiça pela reabertura do Atende 2.

A proposta do órgão é que o local, neste momento, seja um polo para promoção de direitos e de prevenção ao contágio, atuando, por exemplo, no encaminhamento da população para quartos para a quarentena, como diversos países têm feito na destinação de espaços privados em hotéis. “Essas pessoas têm os mesmos direitos que todos nós. É para garantir o direito ao isolamento social dessa população que o Atende 2 poderia ser um polo para encaminhamento desses casos”, destaca o vice-presidente do CNDH.


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