Desamparo

Incêndio em favela de São Paulo vem após pressões e brigas por passagem de monotrilho

Casas de alvenaria foram demolidas para passagem de obra estadual, mas indenizações insuficientes, falta de alternativas e demora para realização das obras levaram à reconstrução de barracos com madeira

Eleven/Folhapress

A destruição levanta suspeitas: a região, altamente valorizada, é alvo de projetos públicos e privados

São Paulo – O incêndio que pôs abaixo 600 moradias onde viviam 2 mil pessoas na favela do Buraco Quente, zona sul de São Paulo, na noite deste domingo (7), não foi uma tragédia inédita: o local já havia sofrido com incêndios em 2004 e 2012, de proporções próximas ao ocorrido ontem, em ambos os casos com as justificativas genéricas de que a precariedade das ligações elétricas, o tempo seco e problemas de segurança com botijões de gás facilitam o fogo. Mas não são apenas as chamas que ameaçam o direito à moradia das famílias do Buraco Quente. A remoção forçada de ontem veio somar-se à negociação traumática entre moradores e governo estadual por indenizações desde que o Metrô deu início à demolição de casas no local para a instalação das estruturas da Linha-17 Ouro.

Há dois anos, após as “notificações” sobre as obras (relatos dão conta de que funcionários do governo estadual apareciam no local e marcavam as casas a serem demolidas com placas, sem oferecer maiores explicações), 400 famílias foram desalojadas. Outras 30 famílias, no entanto, permaneceram: elas não se sentiam contempladas pela indenização oferecida pelo governo estadual, que tem valor máximo de R$ 119 mil, e nem pela oferta de vale-aluguel no valor de R$ 400 mensais até 2015, quando a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) deve concluir projeto habitacional para as famílias da região. Continuaram, portanto, vivendo entre ruínas, ratos e insetos enquanto negociavam com a gestão de Geraldo Alckmin (PSDB). Agora, a luta é outra, e ganha contornos dramáticos.

“O fogo pegou 95% da comunidade. Não houve vítimas (fatais), mas ninguém conseguiu salvar nada”, lamenta o morador Geilson Sampaio, liderança dos moradores na negociação com o governo do Estado. “A situação, por enquanto, é caótica. O cadastramento começou ontem, ainda aguardamos os kits da prefeitura (cobertor, colchão, cesta básica e produtos de higiene). Agora contamos com apoio das igrejas e do centro de juventude, e vamos montar uma cozinha comunitária”, conta. De acordo com a prefeitura de São Paulo, 320 cadastros foram concluídos até o início da tarde desta segunda-feira (8), de um total de 600 que devem ser feitos.

Geílson relata que “cerca de 85%” das moradias no local do incêndio eram de madeira, o que, de acordo com moradores, tem raízes nas desapropriações e no incêndio de 2012, que removeram famílias de casas de alvenaria sem oferecer alternativas suficientes, levando ao aumento dos barracos de madeira na região. As casas de alvenaria, por sua vez, foram construídas em sua maior parte a partir de 2004, logo após o primeiro grande incêndio na comunidade nesta década. A destruição e a reconstrução das favelas no entorno do Buraco Quente, como o Comando e o Morro do Piolho, levantam suspeitas: a região, altamente valorizada, é alvo de projetos públicos e privados.

No caso da Linha-17 Ouro, chama atenção o traçado, que passa sobre nada menos que seis comunidades carentes “ilhadas” entre luxuosos prédios residenciais, hotéis, escritórios e supermercados que aguardam a conclusão das obras para serem beneficiados por uma nova linha de transporte público atualmente, as obras retomam o ritmo após o acidente ocorrido em junho passado, quando uma das vigas de metal que sustentariam os futuros trens desabou, deixando um operário morto. A previsão inicial do governo do estado de São Paulo era que a Linha-17 Ouro estivesse concluída a tempo para a Copa do Mundo.

“Tem tanta coisa por trás. É obra do Metrô, tem a extensão da rua Sônia Ribeiro, que ia pegar 150 barracos… Não sabemos dizer se foi acidental ou não”, afirma Geílson. A dúvida tem menos a ver com uma “teoria da conspiração” do que parece. Os jornalistas César Vieira, Conrado Ferrato e Rafael Crespo são autores do documentário Limpam com Fogo, que aponta a gentrificação como principal agente dos megaincêndios em favelas paulistas. Em entrevista ao site da Carta Capital em junho deste ano, eles relatam que contabilizaram 1,2 mil incêndios em favelas em São Paulo nos últimos 20 anos, metade deles ocorrida apenas entre 2008 e 2012.

Existe muita coisa por trás, mas podemos tentar resumir tudo em uma palavra – gentrificação. A cidade virou um negócio”, afirmam os jornalistas. “Assim, o que for indesejado, o que atrapalhar a valorização, é eliminado. Quando falamos que a especulação (imobiliária) está por trás dos incêndios, não estamos querendo dizer que construtoras e incorporadoras acenderam um fósforo, queimaram as favelas e construíram um prédio no lugar – isso é uma simplificação grosseira. É algo mais sutil. Não se trata de tacar fogo, mas de deixar queimar”, afirmam.

Uma das reclamações dos moradores do Buraco Quente vai ao encontro dessa avaliação: os hidrantes instalados pela Sabesp no local não estariam operantes, e os “zeladores” da comunidade, escolhidos para vigiar e dar início às ações de emergência, seriam mal treinados para lidar com a prevenção do fogo. “Mas nós queremos ficar aqui, sim. Tem gente que vive na região há 30 anos. Falta que haja projeto de moradia para nós”, conclui Geílson.