Para pesquisador, censo do IBGE mostra falta de política de soberania alimentar

Para especialista, há 'inexistência' de reforma agrária. Condições dadas ao agronegócio são sempre superiores às recebidas pelas pequenas propriedades, justificando que nada tenha sido alterado em duas décadas

A conclusão de que a desigualdade na distribuição de terras atual é a mesma existente há 20 anos mostra o fracasso das tentativas de reforma agrária realizadas no país. De acordo com o Censo Agropecuário, divulgado nesta quarta-feira (30) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as propriedades com mais de mil hectares, que representam apenas 1% do total de estabelecimentos rurais, concentram 43% da área total de unidades.

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor titular de Reforma Agrária do departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), lembra, em conversa com a Rede Brasil Atual que a reforma agrária nunca chegou a ser uma política pública dos governos da redemocratização. Ele inclui na lista de José Sarney a Luiz Inácio Lula da Silva, passando por Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. “Quem pressionou para que fosse política pública foram os movimentos sociais. Como os movimentos estão em um período de refluxo da ação política, não há assentamento de reforma agrária”, afirma.

O estudo do IBGE, que revela dados relativos a 2006, mostra que a região Nordeste continua com a maior concentração fundiária, especialmente pelo histórico colonial de grandes propriedades para cana-de-açúcar e pecuária.

Dados da pesquisa
(veja a análise completa na página do IBGE):

– Criação de bovinos é a atividade principal mais comum dos estabelecimentos agropecuários, com 30% de presença.

– Pastagens plantadas tiveram expansão principalmente na região Norte, concentrada nos estados de Rondônia e Pará

– Mais de 80% dos produtores agropecuários são analfabetos ou não concluíram o ensino fundamental. Apenas 3% têm nível superior completo. Entre os trabalhadores, um em cada três é analfabeto e há mais de um milhão de crianças e adolescentes empregados em situação irregular

– Apesar da expansão da soja em área, o algodão teve o maior aumento de produção em dez anos, 188,6%, chegando a 2,4 milhões de toneladas

Marilene Nascimento Melo, pesquisadora na área de segurança alimentar, considera que persiste no Nordeste a lógica de que a terra significa poder, inclusive na troca de favores políticos. Ela aponta que, além da necessidade de reforma agrária, falta atacar os fatores que levam à concentração fundiária. “As condições dadas ao agronegócio do ponto de vista de recursos são incomparáveis à falta de condições dos pequenos produtores”, pondera.

Os dados do IBGE comprovam a concentração de recursos. As propriedades com mais de mil hectares receberam 43,6% da injeção de financiamentos no setor agrícola em 2006, mesmo representando apenas 0,9% dos pedidos. Entre os que decidiram não pedir financiamento, a esmagadora maioria são pequenos proprietários que apontam como motivos a falta de necessidade, o medo de contrair dívidas e o empecilho da burocracia.

Soja avança 88,8% em dez anos. No caso da lavoura desse grão, 46,4% dos estabelecimentos agropecuários optaram pelos transgênicos, e 98% utilizaram agrotóxicos

Os que optaram por realizar empréstimos utilizaram o dinheiro em sua maioria para adquirir terras. Nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, a aquisição de propriedades serviu principalmente para a expansão da soja, cultura que mais avançou ao longo dos últimos dez anos (88,8%). No total, os 40,7 milhões de toneladas colhidos anualmente estão distribuídos em 15,6 milhões de hectares, 6,4 milhões a mais que em 1995-96, data da última pesquisa. No caso da soja, 46,4% dos estabelecimentos agropecuários optaram pelos transgênicos, e 98% utilizaram agrotóxicos.

O professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira considera que a expansão da soja, por si só, não significa um risco à segurança alimentar, uma vez que ocupa 15 milhões dos 780 milhões de terras disponíveis no Brasil. O problema, para o docente da USP, é que a soja representa um percentual muito alto das terras utilizadas no país, mostrando que não há uma política voltada à produção de alimentos.

“A agricultura segue ao sabor do mercado mundial, porque não há política de soberania alimentar no Brasil”, sustenta. Ele qualifica de neoliberal a política de segurança alimentar. “A diferença é que os Estados Unidos têm alimento estocado para três anos. Nós, para três horas”, lamenta.

Assistência técnica

Tanto Ariovaldo Umbelino quanto Marilene Nascimento Melo lembram que a agricultura familiar é responsável por grande parte da produção de alimentos no país, e não recebe a devida importância. A pesquisadora ressalta que muitos assentamentos não têm o acompanhamento necessário para que se consolidem e há dificuldade em formular estratégias de acesso ao mercado.

Os dados do IBGE mostram que a orientação técnica chegou a apenas 22% dos estabelecimentos, na maioria das vezes grandes e médias propriedades. Proprietários com baixo nível de escolaridade são os menos assistidos, com apenas 16,8% de auxílio.

No plantio da cana, a colheita manual persiste em 91,6% das propriedades. A grande preocupação neste caso é com a manutenção de formas de trabalho servis ou insalubres, com falta de equipamentos de proteção individual e coletiva, forte exposição ao sol, alimentação e ingestão de líquidos em níveis inadequados. 

Como o censo é de 2006, flagrou apenas parte do crescimento da atividade sucroalcooleira, puxado pela expansão da exportação e da venda interna de álcool combustível. Marilene Nascimento Melo considera que a questão agrária, que vinha registrando lenta melhora nas antigas propriedades nordestinas, foi “colocada de molho” pela maior atividade no setor. “Há a oxigenação de um sistema que poderia ter menor influência em relação à economia. Possibilita mais investimentos, mais concentração e por aí vai”, lamenta.