brilha a esperança

O STF, o céu e a terra: proibição da pulverização de agrotóxicos no Ceará é sopro civilizatório

Às vésperas do Dia Mundial do Meio Ambiente, neste 5 de junho, a categórica decisão do STF afirmando a constitucionalidade da Lei estadual Zé Maria do Tomé reconhece a luta e a mobilização da comunidade da Chapada do Apodi, severamente afetada pelo despejo de veneno por aviões

Reprodução/Youtube
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Pulverização aérea de agrotóxicos, que terão consumo aumentado com a proposta aprovada

O céu não deveria nos intimidar. Na Carta do Chefe Seattle (1854), considerado um dos mais tocantes pronunciamentos em defesa do meio ambiente, a Terra é invocada como mãe; o céu, irmão. No saber ancestral, o céu e a Terra estão fora das coisas que poderiam ser compradas, saqueadas ou vendidas, como carneiros e enfeites coloridos. Há um senso de pertencimento e de responsabilidade: “O que ocorrer com a terra, recairá sobre os filhos da terra. Há uma ligação em tudo.”

Na tradição judaico-cristã, o céu é associado à divindade: a morada de Deus, que está sobre as criaturas, numa posição elevada com olhar onisciente. Na Encíclica Laudato Sí (2015), sobre os cuidados com a Terra, nossa “casa comum”, o Papa Francisco invoca o cântico de São Francisco, com as referências ao irmão sol e ao céu, em que abriga a irmã lua e as estrelas.

Às vésperas do Dia Mundial do Meio Ambiente, neste 5 de junho, a categórica decisão do STF reconhecendo a constitucionalidade da Lei do estado do Ceará que proibiu a pulverização aérea de agrotóxicos (ADI 6137) faz brilhar a esperança. Ao decidir por unanimidade, com todos os 10 ministros votando favoravelmente à Lei Zé Maria do Tomé (Lei nº 16.820/2019), a luta e a mobilização da comunidade da Chapada do Apodi, severamente afetada pelo despejo de veneno por aviões, ganham contornos de sopro civilizatório.

STF e a Carta da Terra

No processo apreciado pelo STF, constam estudos científicos que relacionam a exposição aos agrotóxicos a doenças crônicas, à malformação de bebês e à puberdade precoce em meninas na Chapada de Apodi. Também há dados da contaminação da água potável e da pulverização sobre a Floresta Amazônica, para acelerar o desmatamento, além da aplicação aérea como arma química, em aldeias indígenas e em conflitos fundiários.

O substancioso voto da relatora do processo, ministra Cármen Lúcia, destaca os princípios constitucionais da precaução e da prevenção que “impõem cautela e prudência na atuação positiva e negativa estatal na regulação de atividade econômica potencialmente lesiva”, que indicam que “os povos devem estabelecer mecanismos de combate preventivo às ações que ameaçam a utilização sustentável dos ecossistemas”. Lembra, também, compromissos internacionais soberanamente assumidos pelo Brasil, na Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente (RIO 92). E na Carta da Terra (Fórum Rio+5), relacionando indicativos da contaminação de áreas vizinhas pela deriva, quando o vento transporta o veneno dos aviões por até 32 quilômetros.

O placar do julgamento é um sinal claro do STF quanto ao compromisso com os objetivos da Agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável, que obrigam a todos os poderes, assim como a sociedade, inclusive os empreendedores. Antes, o Tribunal, na ADPF 656, já havia determinado a suspensão da insana Portaria nº 43/2020, da Secretaria de Defesa Agropecuária, que admitia a “aprovação tácita” e a liberação automática de agrotóxicos.

Decisão contempla objetivos sustentáveis da ONU

No mesmo sentido, a preocupação com o déficit democrático de decisões que afetam a pauta ambiental determinou a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, também unânime, na ADPF 623, que julgou inconstitucional o Decreto 9.806/2019, do então presidente da República Jair Bolsonaro, que alterava e distorcia a composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama, reduzindo a pluralidade na representação da sociedade civil.

Noutra decisão de especial significado para o meio ambiente do trabalho e para a necessidade de submeter as atividades econômicas aos princípios da prevenção e da precaução, em fevereiro de 2023, o STF encerrou o julgamento de recursos interpostos contra a proibição da exploração do amianto crisotila no Brasil. Nas decisões (ADIs 3356, 3357, 3937, 3406, 3470 e ADPF 109), são destacados quatro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU:

  • 3 – Saúde e Bem-Estar;
  • 8 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico;
  • 12 – Consumo e Produção Responsáveis; e
  • 15 – Vida Terrestre. O STF confirmou a inconstitucionalidade da norma federal que permitia a extração, a industrialização, a comercialização e a distribuição da crisotila.

Estados e municípios estão autorizados a editar leis protetivas à saúde e meio ambiente

Assim, a decisão do STF que validou a Lei cearense que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos mostra coerência com as manifestações anteriores e com o compromisso do Tribunal com a pauta ambiental.

Para além da valorização da luta das comunidades cearenses contaminadas, e da esperança na concretização dos princípios constitucionais do desenvolvimento sustentável, que condicionam a ordem econômica, a decisão do STF gera, para todas as instâncias do Poder Público, inclusive para os órgãos de fiscalização e controle em matéria ambiental, o encargo de ajustar as práticas à determinação de respeito ao meio ambiente – bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

Conforme indicado pelo STF, a legislação local que restringe a pulverização aérea de veneno é hipótese admitida de competência legislativa concorrente. Estados e municípios estão autorizados a editar normas mais protetivas à saúde e ao meio ambiente, observando normas gerais, da União.

“O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra”, cacique Seattle

Trabalhadores, coletividades e comunidades afetadas por práticas que provocam mortes e enfermidades, agudas ou crônicas, estão legitimados a cobrar das instâncias legislativas federal, estaduais e municipais, o dever de editar leis e normas que condicionem a atividade econômica à preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, para as presentes e futuras gerações. Os interesses econômicos imediatos, por mais poderosos que sejam, devem submeter-se aos compromissos internacionais e aos imperativos constitucionais que regem a sociedade brasileira.

Para além dos saberes ancestrais e dos signos teológicos, o céu não deve ser fonte de intimidação, pois também é símbolo de consciência, representando aspirações humanas de plenitude e o ideal de perfeição.

As práticas que afetam de forma gravosa o meio ambiente e a vida devem ser conectadas à lição do Cacique Settle: “Há uma ligação em tudo. O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo”.