Democracia sob ataque

Anomia, conspiração e a sombra da liberdade

Logo após as manifestações bélicas de Elon Musk, Bolsonaro postou vídeos com o magnata, uma lista de “realizações” do seu governo e convocou o Rio de Janeiro para uma manifestação

Clauber Cleber Caetano/PR
Clauber Cleber Caetano/PR
Bolsonaro e Musk: pode ser importante manter o ex-presidente no cenário político mundial

Por Ivony Lessa – No último sábado (6), as instituições brasileiras sofreram uma declaração de guerra inesperada. Não de um país fronteiriço, mas de Elon Musk, o segundo homem mais rico do mundo, que lança foguetes e possui a rede social “X”, antigo Twitter.

Primeiro, ele liberou os “Arquivos X – Brasil”, dossiê composto basicamente por uma série de e-mails de funcionários do Twitter reclamando de demandas da Justiça pelo acesso a dados e arquivos de usuários envolvidos em investigações criminais – coisa que ocorre em qualquer nação.

Vemos casos piores em outras partes do mundo, onde demanda-se e se obtém a censura prévia de meios de comunicação estabelecidos pela vaga acusação de “propaganda com financiamento estatal ou estrangeiro”. (Nem mencionemos o assédio à plataforma chinesa Tik Tok em diversos países devido a supostos “riscos à segurança de dados”.)

Pessoalmente, parece-me muito difícil tipificar o delito de “propaganda” em um contexto estritamente jurídico que respeite o princípio da liberdade de expressão. Outra coisa são notícias falsas que ameaçam a saúde pública, apologia ao crime, discurso de ódio etc.

Mas não foi a censura à propaganda que incitou a fúria de Musk. Sem maiores comoções causadas pela compilação de e-mails, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes tornou-se alvo de um tweet-denúncia. “Why are you doing this, @Alexandre?”, Musk questionou, ao republicar uma postagem da conta de Assuntos Internacionais do X com queixas contra decisões e condições judiciais que a companhia está tendo que cumprir. Em seguida, republicou o dossiê de emails em sua conta pessoal e declarou solenemente que removerá todas as restrições: “Isso provavelmente nos levará a perder toda a receita e a fechar nosso escritório no Brasil, mas os princípios valem mais que o lucro.”

Ato contínuo, o arauto escolhido para divulgar os Arquivos X – Brasil, jornalista Michael Shellenberger, começou a postar vídeos e textos, inclusive em português, anunciando que “o Brasil está à beira da ditadura sob o juiz totalitário do STF Alexandre de Moraes” e que “Lula participa desse esforço em direção ao totalitarismo”. Poderia facilmente ser enquadrado como “propaganda com financiamento estrangeiro”. Com que fins?

A Internacional da Extrema Direita

Dois tópicos são onipresentes na agenda midiática brasileira: movimentações partidárias visando eleições e querelas jurídicas de políticos. Parece que nada mais ocorre por aqui, é bastante aborrecido.

Um jornal estrangeiro, The N.York Times, foi quem revelou que Jair Bolsonaro permaneceu hospedado na Embaixada da Hungria entre 12 e 14 de fevereiro. Menos de uma semana antes, o ex-presidente teve o passaporte apreendido por determinação de Alexandre de Moraes no contexto das investigações sobre a tentativa de golpe em 2023.

Logo após as manifestações bélicas de Elon Musk em 6/4, Bolsonaro postou vídeos com o magnata, uma lista de “realizações” do seu governo e convocou o Rio de Janeiro para uma manifestação em que, com pastores evangélicos, falarão sobre “o estado da democracia no Brasil”. Tudo isso no X, de Musk, com bastante orquestramento. Pode ser importante manter Bolsonaro no cenário político mundial, seguramente há interesses financeiros e talvez haja um componente de jogo para quem as apostas nunca são proibitivas.

No X, a frase de perfil do ex-presidente é “Deus, Pátria, Família e Liberdade”. Há poucos dias, fantasiado de soldado, o presidente argentino Javier Milei anunciou a construção de uma base militar naval estadunidense no extremo sul da Argentina, já que os dois países compartilham os valores da “defesa da vida, da propriedade privada e da liberdade”.

Os lugares teológicos conseguem oferecer uma síntese para coisas incompreensíveis, uma vez que elas são incorporadas como premissa de qualquer análise. Lemos em Agostinho que a soberba, primeira entre os pecados, instiga a alma a desejar metas legítimas, como a liberdade, mas por meios equivocados. Esta sombra de liberdade significa, para o indivíduo, obedecer somente sua própria lei tendo, ademais, a total capacidade de executar o que essa lei determina, sem que nada e nem ninguém se interponha entre a realização dos próprios desejos. A liberdade induzida pela soberba se define como uma identidade entre querer e poder, entre desejo e realização – uma imitação retorcida da onipotência. A paz, nesse contexto, também seria uma meta desejada por meio da soberba, a partir da conquista dessa liberdade. Conhece-se também como Rules-based order.


Ivony Lessa é jornalista e historiadora – artigo originalmente publicado no jornal Nósdiario