Pacote do Veneno

Modernidade é tratar a terra e os agricultores com respeito

O Senado tem a oportunidade de proporcionar aos agricultores a devida atenção. E investimentos em pesquisas e alternativas menos tóxicas de produção

Portal Fiocruz
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Indústria do veneno quer ainda mais benefícios tributários

A agricultura, a produção de alimentos saudáveis e os agricultores são muito importantes para o Brasil. Andou bem o presidente da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, Acir Gurgacz (PDT-RO), que também é o relator do Projeto de Lei 1.459/2022, ao anunciar que retirou a publicação e fará reanálise do seu parecer depois de ouvir a Anvisa e o Ibama.

O PL 1.459/22, em tramitação no Senado, modifica integralmente a regulação dos produtos químicos de uso agrícola, desde a pesquisa e o registro até o descarte de embalagens.

Na audiência pública realizada nos dias 22 e 23 de junho, foram ouvidos representantes da sociedade civil, contrários à alteração, e defensores da proposta que interessa à indústria química, que sustentam a perfeição do Relatório aprovado na Câmara. Justificam com a conhecida versão de que os agrotóxicos seriam seguros, se usados corretamente; de que o procedimento de análise e aprovação seria lento; e da suposta “modernidade” da proposta.  

O projeto original, apresentado pelo senador Blairo Maggi em 1999, alterava apenas dois artigos da Lei dos Agrotóxicos (Lei 7.802/89). A Câmara dos Deputados, por meio de um substitutivo aprovado de maneira açodada, na primeira sessão de 2022, modificou completamente o PL. A versão atual conta com 67 artigos e revoga integralmente a Lei em vigor. Facilita o registro e o uso de agrotóxicos ao passo que dificulta, ainda mais, o banimento de produtos comprovadamente nocivos aos agricultores, às comunidades e aos consumidores.

Agrotóxicos e seus impactos

A proposta em análise representaria retrocesso na pauta ambiental, ameaçando a posição brasileira na disputa por mercados mais seletivos e exigentes, preocupados com a contemporânea pauta ambiental – Agenda 2030.

Como assinalou o ex-senador Blairo Maggi, em 2019, nos “últimos anos, os setores exportadores do país tiveram grande trabalho de refazer essa imagem do Brasil e mostrar que temos controles de desmatamento e de todas questões ambientais. Tínhamos conseguido superar bem esse assunto. Mas agora teremos que refazer tudo isso”.

Inicialmente, é necessário registrar que é descabida a invocação da “modernidade” para justificar o PL. O termo, que vem sendo usado rotineiramente em propostas que afrontam o nosso estágio civilizatório, é claramente contraditório numa inciativa que fragilizaria a vida, a saúde, o meio ambiente e os direitos humanos dos agricultores.

Para além de ignorar dados concretos de contaminação e de doenças crônicas a que estão expostos os agricultores, empregados ou proprietários, e seus filhos, que trabalham e habitam as regiões de intensa exposição a produtos químicos de uso agrícola – malformação fetal, aborto espontâneo, distúrbios hormonais, doenças neurológicas, câncer e puberdade precoce, dentre outras – os defensores do PL parecem ver na aprovação, sem discussão profunda, a oportunidade de suplantar, espertamente, questões essenciais.

Se estivéssemos diante de um problema regulatório real, teríamos a identificação da causa do problema, na hipótese, a demora na aprovação de novos produtos, e a indicação da solução capaz de sanar o problema que gera a distorção.

Interesses da indústria química

Ocorre que o sistema de análise e registro se mostra extremamente ágil para a liberação de novos produtos. Estão autorizados e em comercialização 3.478 produtos agrotóxicos no Brasil, sendo que 1.682 foram autorizados nos últimos quatro anos. Com agravante de que cerca de 40% do total usa formulações tóxicas banidas de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

A priorização dos interesses da indústria química, em prejuízo dos agricultores, desvelou-se no caso da recente autorização para o herbicida Dicamba, apesar do posicionamento contrário da Confederação Nacional da Agricultura. A Associação de Produtores de Soja havia emitido um alerta: “Caso opte por utilizar tanto as sementes transgênicas quanto o herbicida Dicamba, o produtor precisa entender que ele estará por sua conta e risco e que poderá ter problemas, mesmo que adote todas as recomendações de bula”[i].

Portanto, seria de se esperar, se o argumento fosse honesto, que a poderosa influência política movimentada em favor do PL fosse dirigida à priorização da análise das formulações que representam inovações tecnológicas, menos tóxicas e mais econômicas, que, supostamente, teriam a análise e a autorização represada pela burocracia que, segundo afirmam, impediria o avanço do setor.

Algumas melhorias, conforme apontado no Acórdão nº 2.287/2021[ii] do Tribunal de Contas da união (TCU), como as falhas na gestão, as deficiências na transparência e na consistência das informações das filas de registro na Anvisa não dependem de uma nova Lei.

Os agricultores merecem a correção das irregularidades. A influência política, caso o argumento da demora na análise fosse real e sério, poderia ser mobilizada para induzir os entes estatais a equiparem e recomporem os quadros técnicos da Anvisa e do Ibama, para acelerar as análises de novos produtos e a reanálise daqueles comprovadamente tóxicos já condenados em outros países.

Agravante muito preocupante

Não parece ser o caso. O PL investe pesadamente na possibilidade de suprimir ou dar papel secundário à análise das áreas encarregadas de proteger a saúde, dos agricultores e dos consumidores, e do meio ambiente.

Há dispositivos que dão supremacia à posição do Ministério da Agricultura na concessão de registros e de autorizações, bem como na definição da prioridade de análise dos pleitos de registro de pesticidas (art. 5º).

O PL vai além. Diz competir ao órgão da agricultura a análise e, “quando couber”, homologar os pareceres técnicos apresentados nos pleitos de registro, conforme as análises de risco à saúde e ao meio ambiente. Ou seja, os órgãos da saúde e do meio ambiente analisariam os documentos toxicológicos e de risco ambiental apresentados pelas empresas de pesticidas (arts. 6º e 7º), funcionando como pareceristas do órgão responsável pela agricultura, a quem caberia homologar, ou não, as manifestações técnicas emitidas.

Uma agravante muito preocupante consiste na fixação de prazos exíguos, considerando a complexidade das análises e o déficit na estrutura do órgão registrante. Não sendo cumpridos os prazos, o PL prevê a possibilidade de concessão de registros e autorizações temporárias.

Ou seja, os agricultores e a sociedade, punidos pelo desmonte dos órgãos de controle, seriam novamente punidos com a exposição a produtos que se quer foram analisados. É de se supor que a dinâmica proposta pode tornar interessante, para a indústria química, o desmantelamento dos órgãos que preservam a saúde e o meio ambiente. Com isso, pesticidas tóxicos seriam autorizados sem análise.

Impugnação de registro de agrotóxicos

No procedimento de reanálise de pesticidas, que segue sem a delimitação de prazo, o órgão responsável pelo setor da agricultura, que coordena o processo, “poderá” solicitar informações aos órgãos da saúde e do meio ambiente para complementar sua análise (art. 28, § 1º). Aqui é óbvia o caráter secundário e meramente opinativo da saúde e do meio ambiente.

É de se notar, também, que, estranhamente, o PL excluiu o rol de legitimados a requerer o cancelamento ou a impugnação do registro de agrotóxicos, no caso de prejuízos ao meio ambiente, à saúde humana e dos animais.

Há, na concepção do modelo regulatório proposto, um outro problema muito grave, na perspectiva da preservação da saúde dos agricultores e suas famílias, das comunidades expostas e dos consumidores de produtos agrícolas com resíduos de produtos tóxicos.

A Lei atual proíbe o registro de agrotóxicos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, ou que provoquem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor. Ou seja, não podem ser registrados agrotóxicos que provoquem câncer, alterem a vida embrionária ou fetal, danifiquem o material genético ou provoquem desregulação do sistema endócrino ou reprodutor.

O PL abranda a restrição. Introduz o impreciso e temerário conceito de “risco inaceitável”. Proíbe o registro de pesticidas que, “nas condições recomendadas de uso, apresentem risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente, por permanecerem inseguros, mesmo com a implementação das medidas de gestão de risco”.

Danos à saúde humana

Esse dispositivo, contido no art. 4º, § 3º, por si só, recomendaria uma ampla discussão do PL. Tanto pelas evidências de que boa parte das recomendações de uso são impraticáveis, pelo analfabetismo funcional e pelas condições climáticas, quanto pela inadequação da sistemática de gestão de risco para danos tão graves sobre a saúde humana e sua incompatibilidade com o princípio da precaução.

Qual seria o percentual de dano “aceitável” para casos de câncer, abortos espontâneos, malformações de bebês, autismo, depressão, suicídio, Alzheimer ou Parkinson?  

A agricultura – arte de cultivar os campos – envolve um conjunto de saberes e técnicas concebidas para o cultivo da terra a fim de obter produtos necessários para os seres humanos, de forma imediata ou por transformação. Seu desenvolvimento remonta à pré-história (pelo menos 10 mil anos).

A ideia da mãe-terra, presente nos versos do cancioneiro popular que usa metáforas como afagos, desejos, cio e fecundação do chão, estava presente na devoção dos romanos a Ceres, deusa da agricultura, da fertilidade, das plantas que brotam e do amor maternal.

Afagar a terra
Cio da terra, propícia estação
E fecundar o chão”
Chico & Milton

Setor de insumos em alta

Desde o final do século 20, graças à ciência e muito trabalho, o Brasil ganha destaque na produção agrícola, despontando entre os principais produtores de grãos, frutas, fibras e proteínas de origem animal.

A Embrapa festeja os dados [iii]. Enaltece o crescimento da produção e da produtividade da agropecuária nas últimas quatro décadas. Porém, registra as distorções, que chama de “desafios”: a concentração de riqueza em parcela restrita de produtores; a degradação de milhões de hectares de solos e pastagens; a ineficiência no uso da água na irrigação, e os riscos à saúde e ao meio ambiente pelo uso intensivo e inadequado de agroquímicos.

O Censo Agropecuário 2017 do IBGE [iv], confirma os dados de concentração de terras, com maior uso de agrotóxicos e menor número de postos de trabalho no campo.

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) [v], por sua vez, divulgou dados da variação do PIB do agronegócio em 2021, festejando ótimas cotações do mercado externo. A análise demonstra que o setor de insumos do ramo agrícola teve variação da ordem de 60,52%, muito superior aos ganhos dos produtores, do setor primário, de 23,50%.

Pertinente assinalar que tramita na Câmara dos Deputados uma Proposta de Fiscalização e Controle (PFC 19/2022) [vi] que pretende escrutinar significativo aumento de preços de fertilizantes e insumos agrícolas, com fortes indícios de prática de cartel, e graves prejuízos aos produtores rurais, à economia nacional e aos consumidores.

Portanto, o modelo de produção com forte dependência química vem transferindo recursos à indústria de agrotóxicos e deixando um pesado passivo para a saúde e para o meio ambiente.

Natureza dos interesses envolvidos

Constatações como essas levaram os especialistas em direitos humanos da ONU a afirmar que o PL teria consequências arrasadoras para saúde e o bem-estar dos brasileiros, pedindo ao Senado Federal que o rejeite, com o alerta de que sua adoção marcaria um retrocesso para os direitos humanos no país.

A proposta submetida ao Senado tem condenação em mais de 100 organizações da sociedade civil, instituições de pesquisa e sociedades científicas, não custeadas pela indústria química.

Ao analisar a proposta de profunda alteração regulatória do setor, é importante considerar a natureza dos interesses envolvidos. A modernidade, no caso, que interessaria aos agricultores, seria produzir mais, de forma segura, com justo retorno, sem acréscimo de custos e sem expor suas famílias, seus empregados e suas comunidades a produtos comprovadamente nocivos.

O Senado Federal tem a oportunidade de aprofundar a discussão. Os agricultores, muito enaltecidos em discursos e em propagandas, são credores de atenção e investimentos em pesquisa e financiamento de alternativas menos tóxicas de produção.

Quando se refere à valorização do trabalho humano, que tem por fim assegurar a todos digna existência, conforme os ditames da justiça social, observando princípios como o da defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, a Constituição não excluiu aqueles que afagam e conhecem os desejos da terra.

Leomar Daroncho é procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.


[i] https://aprosojabrasil.com.br/comunicacao/blog/2021/08/17/aprosoja-brasil-manifesta-preocupacao-com-registro-de-biotecnologia/

[ii] https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/sistematica-de-registro-de-agrotoxicos-no-brasil-e-pouco-competitiva-em-relacao-a-padroes-internacionais.htm

[iii] https://www.embrapa.br/visao/trajetoria-da-agricultura-brasileira

[iv] https://censoagro2017.ibge.gov.br/

[v]https://www.cepea.esalq.usp.br/upload/kceditor/files/Cepea_CNA_PIB_JAn_Dez_2021_Mar%C3%A7o2022.pdf

[vi] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2326735