Desenvolvimento em Foco

Da desconstrução ao novo: recuperar o que foi destruído

É preciso reestruturar um Estado nacional destruído pelas políticas de cortes, sem o que não se consegue minimamente implementar políticas públicas eficientes

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Em nota técnica na próxima Carta de Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul tratamos de um desafio inicial posto para o novo governo. A questão dos compromissos assumidos, o orçamento deixado pelo governo Bolsonaro e a lei do teto de gastos. Este texto traz uma síntese das ideias colocadas.

Na área econômica, o processo de ruptura institucional que tivemos em meados da década passada, culminando com o mandato do atual presidente que ora se encerra, teve três pilares. Os dois primeiros conduzidos por seu antecessor logo na sequência do processo de ruptura e do afastamento da presidente Dilma: a aprovação da legislação de limitação de gastos públicos (o “teto de gastos”) e a reforma trabalhista.

Não tendo podido este trabalho ser completado pelo presidente Michel Temer, em função da instabilidade política a partir do vazamento das gravações feitas por Joesley Batista no próprio palácio presidencial, e que de certa forma o colocava frente à perspectiva do afastamento da presidência, durante meses, o então presidente não fez mais do que administrar a situação política, visando evitar que um processo de impeachment fosse realizado com sucesso, encurtando o seu mandato.

O terceiro pilar ficou para o presidente seguinte, Bolsonaro, completando a obra iniciada com o afastamento de Dilma Rousseff: a reforma da Previdência Social. É natural que o debate sobre esses três temas, pilares da ruptura de seis anos atrás, voltem à discussão agora.

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De fato, pelas várias medidas da prática orçamentária ao longo de seu governo, poder-se-ia dizer que o tal teto foi abandonado pelo próprio governo Bolsonaro. Alguns chegam a dizer que o teto nunca existiu, porque as exceções já se abriram no governo Temer.

Ou seja, o debate é se o teto já não existe mais ou se ele em algum momento existiu. Isso porque, enquanto a visão liberal gerenciava o orçamento, não havia de fato preocupação. Quando se começou de fato a discutir a inclusão dos gastos sociais no orçamento de novo, o tema entrou em discussão quase como um divisor de águas.

É preciso sim garantir os gastos sociais, e aqui estamos falando de programas contra a miséria e a fome, como o Bolsa Família, a ampliação do salário-mínimo.

A maior parte da população do país não pode ser condenada à miséria. O corte de gastos em muitas áreas, como saúde e educação, é insustentável sob risco do governo perder a sua base social e política.

É preciso ainda reestruturar um Estado nacional destruído pelas políticas de cortes, sem o que não se consegue minimamente implementar políticas públicas eficientes. Isto inclui um corpo técnico de funcionários eficientes e que sejam capazes de dar conta das necessidades, ou seja, concursos públicos que não foram realizados e revisão de planos de cargos e salários que foram atropelados.

Mais, é fundamental expandir o gasto público para a economia voltar a crescer, para sairmos da estagnação, ter um círculo virtuoso, no qual o crescimento resulte em aumento da arrecadação e um equilíbrio fiscal real e sustentado.

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O que temos que discutir de fato é o orçamento como um todo, o que deverá ser feito com o tempo, já que o orçamento a ser administrado pelo governo eleito no ano que vem é em boa medida o orçamento proposto pelo atual governo.

Para além de qualquer remendo que possa ser feito agora, é fundamental, de acordo com a legislação orçamentária que existe no país, aprofundar esses debates de forma consistente na discussão do Plano Plurianual, de forma a que os objetivos, as tarefas e o modo de fazer estejam claros ao longo de um período, ao longo de um mandato presidencial, sancionados pelo Congresso.

Com uma discussão geral do orçamento, e incluindo questões como a eficiência do Estado e a reforma tributária, podemos chegar a regras que garantam ao mesmo tempo um orçamento que seja flexível, permitindo os gastos sociais necessários e priorizados de acordo com cada governo eleito, anticíclico de forma a permitir que o gasto público possa ser usado para ativar a economia em momentos de recessão e estagnação, como o atual, e a própria questão do que é uma dívida pública sustentada em um país como o Brasil.

O ponto seguinte é a reforma trabalhista. A reforma de 2017, feita a toque de caixa pelo governo Temer (e aprofundada por Bolsonaro), teve como centro a flexibilização e a perda de direitos dos trabalhadores, e a tentativa de inviabilizar a participação dos sindicatos nos processos de negociação.

É preciso entrar nessa discussão revendo fundamentalmente esse viés. É importante fazer alterações que tomem em consideração as mudanças na realidade do mundo do trabalho, afinal nossa velha CLT é dos anos 1940.

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Além disso, todas as consecutivas reestruturações tecnológicas das últimas décadas, em especial as mais recentes, operaram para aumentar a flexibilização do trabalho, aumentar a componente de serviços no emprego e, no período mais recente, aumentar a informalização, o trabalho em plataformas (o que alguns chamam de uberização do trabalho), a flexibilidade do trabalho.

A discussão agora não pode ser simplesmente voltar atrás na legislação do trabalho. É preciso considerar as mudanças recentes na operação do capitalismo a nível nacional e mundial.

A regulação tem que funcionar para obrigar a que o funcionamento das empresas para valorizar seus ganhos não se reduza a uma superexploração do trabalho, agravando um problema que já temos de sobra no país, a concentração de renda, mas que busque as vias do crescimento e da introdução de tecnologias.

Por outro lado, é fundamental fazer essa discussão no seu sentido mais amplo: se, para dar conta de nossas necessidades de bens e serviços, precisamos trabalhar menos, por conta das possibilidades tecnológicas, então que todos trabalhem menos, e não que muitos sejam excluídos do mercado de trabalho. Essa questão do tempo de trabalho é essencial, sem o que a equação não fecha.

Mas as mexidas têm que ser visando viabilizar a negociação coletiva, e uma flexibilidade que tenha dois lados, e não apenas a retirada de direitos dos trabalhadores. Ou seja, há que se refazer esse debate.

Finalmente, a discussão do financiamento da Previdência Social tem que ser retomada. O capítulo que versava sobre Saúde, Assistência e Previdência Social na Constituição aprovada em 1988 e que era a base de um “pacto social” não explícito acordado no país naquele processo político, era central para iniciar as alterações, em bases progressistas, de uma sociedade extremamente desigual como a que tínhamos – e ainda temos – no país.

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As alterações unilaterais que foram sendo feitas, várias inclusive por emendas constitucionais, desde os anos 1990, foram desfazendo os preceitos de redução de disparidades, previstos inclusive nos mecanismos de financiamento que foram postos nesse capítulo constitucional, de modo a permitir que recursos que deveriam financiar Saúde, Assistência e Previdência Social pudessem ser realocados para outros fins – como pagamentos de encargos da dívida pública, por exemplo.

Assim, se o objetivo é reconstituir o pacto constitucional de 1988, é fundamental refazer esse debate em outras bases.

Se a discussão previdenciária precisa ser atualizada – e é possível que isso tenha que ser feito, dadas as mudanças do perfil demográfico do país – isso tem que ser feito não apenas pelos antolhos da visão fiscalista, mas considerar inclusive que o aumento da formalização do emprego e dos salários de base contribui essencialmente para a sustentação do sistema previdenciário – ou melhor, de Saúde, Assistência e Previdência Social – que queremos ver construído no país.


Adhemar S. Mineiro é economista, membro da Coordenação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (Abed-RJ), doutorando do PPGCTIA-UFRRJ, assessor da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip),colaborador do blog Terapia Política, e voluntário do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo, Inovação e Conjuntura da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (Conjuscs).