Vida abaixo de zero

Neve em Grunewald, parque no subúrbio de Berlim. Alemães têm orgulho de seu inverno (Foto: Stefan Schievelbein/Sxc.hu) De repente, me assaltou a consciência de que hoje, 25 de janeiro de […]

Neve em Grunewald, parque no subúrbio de Berlim. Alemães têm orgulho de seu inverno (Foto: Stefan Schievelbein/Sxc.hu)

De repente, me assaltou a consciência de que hoje, 25 de janeiro de 2010, era feriadão em São Paulo. Essa coisa de viver num país e ser correspondente da mídia de outro. Viver o duplo tempo. Com perdão do editor, não precisava correr para escrever o meu post cultural e político, ou ambos, para o blog. Podia até escrever “blogue”, “internete”, assim mais brasileiro, mais descontraído…

Então me assaltou uma vontade de me espreguiçar, e olhei pela janela. Surpresa: aqui em Berlim, onde vivo, era o primeiro dia de sol em um mês!

Falta de sol não é novidade. Me lembro (desculpem o erro de português, mas em dia de preguiça isso pode) de um ano, quando eu vivia em Itapecerica da Serra e dava aulas na USP, em que começou a chover em outubro e só parou num dia de janeiro do ano seguinte.

Mas… tinha luz! O maior problema do inverno nessas plagas do norte da Europa é a falta de luz. Tem dia que não amanhece. Dos fins de novembro até os começos de janeiro. É assim: 8h15 (não acredita, leitor/leitora: sim, oito e quinze) da manhã, começa timidamente a clarear. Mas é um dia nublado. Sem neve: são os piores. A neve alumeia, porque reflete a luz. Sem neve: o dia não chega. Não amanhece. Fica no lusco-fusco. No cinza. O tempo todo. Aliás, o tempo todo é muito curto. Quando a gente vê, já são 3h30, três e meia da tarde, e já está anoitecendo. Dez pras quatro, noite fechada. Cruz credo!

Mas como eu disse, a neve alumia. Neve é uma fixação nacional, no Brasil. É claro que temos uma experiência reduzida e limitada de neve. Folclórica, dava pra dizer. (Hoje, até pode escrever “pra”). Na verdade, neva mais do que se pensa no nosso país natal. Já nevou no Itatiaia, no Rio de Janeiro, em Maria da Fé, em Minas Gerais, e no Pico da Bandeira, no Espírito Santo. Uma das maiores nevascas do mundo foi registrada em Vacaria, veja só, no Rio Grande do Sul, em agosto de 1879 (!): dois metros! Outra em São Joaquim, Santa Catarina, nos idos de 50: um metro e trinta! Isso é um monte, coisa de Ártico, Antártida, Sibéria, Canadá.

Mas temos pouquíssima e reduzidíssima experiência de neve em metrópoles: nevou algumas vezes em Curitiba, e uma vez pelo menos a neve acumulou alguns centímetros no chão nos morros ao redor de Porto Alegre. Nevou em cidades médias, como Bento Gonçalves, Caxias do Sul.

Para falar a verdade, na maioria das cidades brasileiras nevava… em dezembro! Sim, era quando as revistas em quadrinho eram tomadas pela neve em Patópolis, do Pato Donald, tio Patinhas e sobrinhos, no Natal. Então víamos a neve branquinha, na impressão a quatro cores, tudo congeladinho e no seu lugar. Era tão impressionante que corríamos para colocar algodão nos pinheiros de natal, que naquela época eram araucárias, não os Pinus elióttis de hoje (ainda bem, precisamos proteger as araucárias).

Neve numa metrópole, como Berlim, é um fenômeno contraditório. No começo, é muito legal. É bonito. A paisagem silencia. Os flocos revoluteiam no ar. E vão cobrindo tudo: a neve no começo é democrática.

Depois vem o segundo momento: a neve derrete um pouco, depois congela de novo. Meu Deus! A cidade vira uma pista de rinque de patinação, ou uma mistura de neve, gelo, pedrinhas e areia (para não escorregar) e sal, para derreter (o que acaba com os carros e os sapatos).

Aí vem o terceiro momento, o pior: a neve derrete, vira uma coisa aqui chamada “Matsch”: uma mistura de neve derretida, pó de asfalto, areia, aargh! O frio e a umidade sobem pelas pernas, por debaixo do sobretudo, chegam até as pontas dos dedos por dentro das luvas. Os escorregões e as quedas tornam-se inevitáveis. Daria até para escrever uma crônica: “Traseiros brancos”! 

Também temos de enfrentar os dramas da temperatura. No sul do Brasil, e mesmo em outros lugares onde faz muito mais frio, a diferença de temperatura entre o amanhecer e o meio da tarde é grande. Por exemplo: já vivi em Montreal, no Canadá, onde, se amanhece com menos 30 ºC, à tarde está a maravilha de menos 10 ºC! Aqui, por vezes, não: amanhece com menos 10 ºC e à tarde está o mesmo: menos 10 ºC. Ou pode ser diferente: amanhece com 0 ºC e fica o dia inteiro assim. Dá uma sensação de que “o tempo não passa”.

Mas não é verdade: o tempo passa sim, os dias vão mudando dramaticamente de tamanho, sob a neve medra o verde. Os berlinenses têm orgulho do seu inverno. Sobretudo este, que está sendo rigoroso. Outro dia ouvi um comentário de um meteorologista: “dizem que este inverno está sendo o caos. Não é verdade, está sendo apenas um verdadeiro inverno”.

Mais ou menos, na verdade. Antigamente havia muito menos vôos do que hoje. Nos aeroportos houve de fato um caos. Aproximadamente entre meados de dezembro e fim de janeiro um milhar de vôos foi cancelado na Europa, sem falar nos atrasos. Os trens foram congelando e, vejam só, primeiro os mais rápidos, de tecnologia nova, mas mais frágeis. Os metrôs foram parando também, e, em conseqüência disso, superlotando. Há muito mais gente circulando, e isso traz uma nova paisagem, novas inseguranças.

Há também na Europa uma nova miséria (claro que não se compara à dos países pobres, mas ela existe). Numa única noite em Varsóvia, na Polônia, morreram quinze pessoas de frio, todas “sem teto”, numa paisagem social que o mundo ex-comunista passou a ter de volta com o capitalismo triunfante.

Isso prova que o tempo passa de verdade. Mas nem sempre “para frente”. O tempo também pode regredir.