Islândia: lição de democracia à Europa ‘austera’ – parte 5.

Sigrídur: “A nova Constituição islandesa estabelece que 97% dos recursos naturais são propriedade da nação. Não do estado: eles não podem ser vendidos” No dia 20 de outubro a Islândia […]

Sigrídur: “A nova Constituição islandesa estabelece que 97% dos recursos naturais são propriedade da nação. Não do estado: eles não podem ser vendidos”

No dia 20 de outubro a Islândia realizou um plebiscito sobre seu novo projeto de Constituição, num processo aberto pelos desdobramentos da crise financeira de 2008, que devastou o país.

A Constituição islandesa datava de 1944, quando foi proclamada sua independência da Dinamarca. Já se discutira no Parlamento e fora dele sobre a necessidade de revisá-la. A crise precipitou a decisão.

O procedimento, antes descrito (v. parte 1 desta série) aqui, foi dos mais originais. Primeiro, se escolheu uma grande Assembleia Constituinte, com 1.500 participantes, que delineou as balizas conceituais do novo projeto. Depois escolheu-se uma Comissão de 25 cidadãos independentes, sem vínculos partidários, que redigiram o corpo da Constituição. Este foi levado ao Parlamento, que encaminhou o plebiscito. Este, por sua vez, consagrou a proposta como base para a nova Constituição, que o Parlamento deverá votar.

Conversamos com a deputada Sigrídur Ingadóttir, da Aliança Social-Democrata, que apoia o novo governo,  sobre a proposta e o procedimento.

A deputada ressaltou que o processo foi muito amplo e participativo. “O referendo foi consultivo, não decisório”, disse ela. “Mas é um guia para o Parlamento. Os dois partidos do governo estão a favor da nova constituição, junto com um partido da oposição. Há um partido mais conservador completamente contra ela, enquanto há ainda um partido oposicionista que parece querer colaborar com o governo. Há ajustes técnicos a fazer, e o Parlamento terá a última palavra. Mas dois terços dos votantes no referendo se declararam a favor da proposta, e isso não pode ser ignorado.”

Sigrídur Prosseguiu: “A nova Constituição não é, digamos, revolucionária. Aumentou, é certo, o capítulo dos direitos humanos. Mas, por exemplo, o Parlamento continua sendo o fórum legal mais importante. Mas há mudanças: antes, quem vivia na área da capital tinha seu voto com o valor da metade de quem vivia fora dela. Agora, vai valer o princípio de um eleitor, um voto, por igual para todos. Há um avanço democrático, portanto. Outra mudança se deu quanto aos recursos naturais. Só 3% deles são propriedade privada. E a nova constituição estabelece que os 97% restantes são propriedade da nação. Não do Estado: eles não podem ser vendidos, por exemplo. Quem quiser explorá-los privadamente vai ter de pagar preços de mercado. Outra novidade importante é que agora um certo número de cidadãos podera requerer plebiscitos nacionais. Aumentará, portanto, a democracia direta”.

Perguntei à deputada se isto não se chocava com a vontade manifesta de seu partido a favor da entrada da Islândia definitivamente na União Europeia (UE). Fiz ver, por exemplo, que a proposta de realização de um plebiscito na Grécia sobre o plano de austeridade que estava sendo proposta pela União Europeia ao governo de Atenas custara o governo ao primeiro ministro Yorgios Papandreou, forçado a se demitir por pressão de Bruxelas, Frankfurt, Paris (então com Nicholas Sarkozy no governo) e Berlim. Também argumentei que a proposta de nacionalização dos recursos naturais, aprovada no plebiscito islandês, ia contra toda a ortodoxia defendida e hegemônica na União Europeia e no próprio Parlamento Europeu, sustentada inclusive pelos partidos da Social Democracia e os Verdes.

A deputada contra-argumentou que a UE é uma proposta importante demais para ficar prisioneira de governos circunstanciais, que estes podem mudar, e citou o caso da eleição de François Hollande na França, que desbalançou a hegemonia ortodoxa. Concordei, lembrando que a UE era uma proposta promissora num espaço geográfico e político que tivera uma guerra de proporção continental, senão mundial, a cada duas gerações, desde o Renascimento, senão antes.

Mas concluí a conversa teimando na ideia de que a lição democrática da Islândia ia na contramão das correntes hegemônicas na Europa.

Concluí, modo de dizer. Porque a conversa prosseguiu – mas sobre o Brasil, nossa história recente, a presidenta Dilma Rousseff, pelo que e por quem a deputada tinha grande curiosidade.