Alemanha: o amargo remédio. Remédio?

Angela Merkel é alvo de críticas na Alemanha (Foto: Matthias_Süßen/Wikipedia) A Alemanha é o pau da barraca do euro. Pois a água montante na inundação da crise do euro (para […]

Angela Merkel é alvo de críticas na Alemanha (Foto: Matthias_Süßen/Wikipedia)

A Alemanha é o pau da barraca do euro. Pois a água montante na inundação da crise do euro (para não falar do rio Oder, que vem da Polônia, muitos metros acima do normal) chegou ao centro do picadeiro.

Na segunda-feira, depois de 11 horas de reunião de sua equipe de governo no domingo, e outras quase tantas na segunda, a chanceler Ângela Merkel anunciou um pacote de cortes orçamentários (80 bilhões de euros até 2014) que vem sendo descrito como o maior da história alemã.

Segundo os comentários na mídia, o pacote vem sendo descrito chamado de desde o amargo, mas necessário remédio, até de “covarde”, porque penaliza os cidadãos mais frágeis e seus direitos ou conquistas históricas.

Também de acordo com os comentários, foi rejeitada a hipótese de aumento de impostos, tanto sobre a renda quanto a de valores agregados. Em compensação, foi criado um novo imposto sobre viagens aéreas, ou seja, a classe média também vai entrar na dança durante as férias e os negócios que exijam viagens.

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 Uma outra mudança importante é a que faz o Estado credor preferencial no caso de quebras e falências ao invés de, por exemplo, dívidas trabalhistas.

 

Porém o grosso dos cortes vai mesmo penalizar subsídios, salário-desemprego e ajudas familiares, como a de 300 euros por mês que as mães solteiras recebem.

No campo dos subsídios, serão afetadas isenções ou reduções de impostos sobre melhoras no consumo de energia, reformas de prédios antigos para esse fim, e sobre a poupança para fins de aquisição da casa própria. Também perderá a isenção de impostos o pagamento de salários por horas extras (domingos e feriados e horário noturno).

Em termos de ajuda direta, haverá cortes no financiamento para a indústria do carvão e a do aço; no financiamento para aquisição da primeira casa própria, melhora no consumo de energia e no campo da agricultura.

Numa proposta ainda sem contornos nítidos, a chanceler anunciou um corte de 10 a 15 mil empregos públicos até 2014. Ainda não se sabe a extensão desses cortes e de outras “economias” no campo dos serviços sociais da área pública.

Como compensação, ou paliativo, a chanceler declarou que não haverá cortes nas aposentadorias, na educação e na pesquisa, mas que haverá revisão dos orçamentos militares.

Seria uma ilusão pensar que a economia do zona do euro chamasse, para ajuda-la na crise grega e na crise geral da moeda, o FMI, sem que o seus amargos remédios não afetassem a vida de todos, só a das economias mais fragilizadas, como as da Grécia, Portugal, Espanha e Itália.

A situação da dívida pública em quase todos os países da zona do euro chegou a patamares críticos. A recomendação dos economistas de Bruxelas (sede oficial da União Européia) e Frankfurt (sede do Banco Central Europeu) é de que o montante da dívida não passe de 60% do PIB. Pois bem, hoje, nas estimativas para 2010, apenas Eslovênia, Eslováquia, Finlândia e Luxemburgo estão dentro desse patamar (respectivamente 41,6 %, 40,8%, 50,5% e 19%).

Chipre (62,3%), Espanha (64,9%) e Holanda (66,3%) têm “excessos” relativamente baixos. Assim mesmo, devido às diferenciações econômicas e sociais, a situação de cada país é muito peculiar. A Espanha, por exemplo, com uma taxa de desemprego altíssima e já em recessão, é considerada um dos países “a perigo” na União Européia.

Nos outros países, a relação entre dívida e PIB vai indo para a estratosfera: Áustria (70,2%); Irlanda (77,3%); Alemanha (78,8%); França (83,6%); Bélgica (99%); Itália (118,2%) e a “finada” Grécia (124,9%).

Em todas as situações, no entanto, os “experts” tanto do FMI como do “Consenso de Bruxelas” apontam os excessivos gastos públicos e, sobretudo, a “generosidade” dos “gastos sociais” como os culpados por essa situação de desordem, que é a primeira grande crise da nova moeda e da União Européia como um todo. Daí a necessidade de cortar na carne dos orçamentos, para restaurar a “confiança” e “apaziguar os mercados” [financeiros, óbvio].

Entretanto, há vários fios dessa intrincada meada em que a até recentemente “Arca de Noé”, agora “quase Titanic” zona do euro se transformou. Por exemplo, desde março, pelo menos, o Congresso dos Estados Unidos vêm investigando o papel da Goldman Sachs e de outras instituições financeiras de Wall Street tanto na construção desse cenário apocalíptico quanto, por vezes, no seu ocultamento, através de manobras contábeis e cambiais.

Há uma prática do mercado financeiro chamada de “swap”, que, de acordo com os analistas do mercado, é comumente usada pelos países europeus no renegociamento de suas dívidas e também, portanto, no seu refinanciamento. Consiste ela, de uma maneira geral, em jogar uma dívida para o futuro, em troca de um remanejamento de compromissos; por exemplo, a troca de uma taxa de juros fixa por uma flutuante, ou vice-versa. Normalmente, nessas “passagens”, que podem durar desde 2 anos até 15, há também uma troca de moeda: o país contrai a dívida em dólar ou iene, converte-os na passagem para o euro (que é a moeda que os governos usam), e no momento de se pagar a conta há a reconversão da dívida à moeda original.

Não tenho radiografias das dívidas de cada país, mas algo me diz que contrair a dívida num momento em que a própria moeda estava valorizada (o euro anos atrás) e agora ter de pagá-las (porque esse momento chega) ou ter de planejar o seu pagamento, num momento em que ela está desvalorizada, não é bom para os serviços dessas dívidas ou sua liquidação. Nisso, quem se liquida é o usuário da moeda no cotidiano, em termos de perda de poder aquisitivo, perda de pensões, auxílios, empregos, subsídios, estagnação econômica, que é o que já está acontecendo e vai se agravar, aprofundando a tendência recessiva nas economias e a depressiva nos cidadãos e de seus direitos.

Além disso, as investigações do Congresso norte-americano trouxeram à luz certos fatos inquietadores e agravantes. Através de manobras não tão consuetudinárias como as anteriormente descritas, a Goldman Sachs e outras ilibadas instituições financeiras da prestigiosa rua de Nova York facilitaram o ocultamento contábil de parte dos empréstimos renovados ou financiados pelos “swaps”. Na troca de moeda, por um passe de mágica, as quantias redefinidas em euros deixavam de ser contabilizadas como “dívidas” ou “empréstimos”, e, ainda mais, as instituições financeiras, como se bancos centrais fossem, fixavam uma taxa de câmbio de seu alvitre, favorecendo quebras nos registros que tornavam os relatórios financeiros palatáveis para Bruxelas, Frankfurt e outras instituições financeiras que entrassem na dança, como o banco grego que comprou os títulos da dívida de seu país da própria G. Sachs em 2005, ou emprestando ainda mais dinheiro para os governos já perigosamente endividados. As investigações em Washington apontam para a Itália como um outro país que tenha se beneficiado do esquema, ficando em aberto, dependendo de outras investigações, se outros países teriam saído do pantanoso terreno do “swap” normal para o  buraco negro do outro tipo.

De todo modo, seja em que sistema for, chegou a hora do “paga”. Ou de por no papel como e quando vai se chegar a essa hora. E a situação transformou-se em tumulto. Por quê? Porque se revelou que a zona do Euro era um conglomerado federativo frágil de economias nacionais sem muitos critérios comuns na realidade, só no papel. Até porque um dos critérios fundamentais de Bruxelas, além dos numéricos sobre PIBs e dívidas, era uma certa “ausência de critérios”, através das desregulamentações, privatizações, liberação de mercados, essas coisas que nos enfiaram pela goela durante tantos anos como a panacéia universal. Tais medidas de descontrole programado facilitaram, por exemplo, a sonegação ou a evasão para paraísos fiscais distantes ou próximos, como é o caso de Luxemburgo e da Suíça. Recentemente o governo alemão envolveu-se em delicada polêmica ao anunciar a compra de dados sigilosos “roubados” de instituições financeiras desses países em cds disponibilizados pelos “ladrões”.

Em suma, como diz ditado de minha terra natal, “a coisa é feia e vem se debruçando”.

Haverá reações. Manifestações contra o pacote já estão sendo convocadas para os próximos dias. Os partidos de oposição (SPD, Verde e Linke) prometem renhidas discussões no Parlamento sobre o pacote.

Outros economistas apontam que seria melhor esperar a recuperação das economias para tomar medidas como essas, pois elas arriscam aprofundar a recessão já em curso, levando a uma espécie de “estagflação”, estagnação com inflação, coisas que também conhecemos no passado. Assim, como seria de esperar, e como aconteceu na Argentina nossa vizinha, o remédio pode ajudar a colocar o paciente na morgue, prontos para a autópsia. Ou ainda na outra situação, a de que salvam-se os números, mas o povo se dana.

A presente situação é também mais um desafio para a já combalida coligação do governo Merkel. No dia 30 elege-se o novo presidente do Estado alemão. Ângela Merkel escolheu seu correligionário da União Democrata Cristã (CDU), Christian Wulff, para suceder o sainte Horst Köhler. Dois partidos da oposição, o Verde e o Social Democrata, apresentaram Joachim Gauck, um conhecido pastor protestante que se encarregou de investigar a polícia secreta da antiga Alemanha Oriental depois da queda do muro e da débâcle do comunismo.

Quem elege o presidente é o Colégio Eleitoral formado pelos 624 membros do parlamento, mais um número igual de delegados escolhidos proporcionalmente pelos estados. Nesse colégio eleitoral, a coligação liderada pela chanceler tem uma maioria assegurada por 22 votos. Se der a lógica, o candidato apontado pela chanceler deve ganhar. Mas nessa Europa a caminho de construir o seu próprio terceiro mundo, tudo pode acontecer.