palavras

Em Manoel de Barros, poeta de um mundo caduco, nasce a linguagem

Ele era das coisas pequenas e das palavras ínfimas, aquelas destituídas de pompa e circunstância

secretaria de cultura rj/reprodução

Gostava de coisas como água e sapos, e detestava aquelas coisas e palavras que de tão ditas não dizem mais nada

Há muito tempo atrás, quando eu colaborava para o Diário Oficial do Estado de S. Paulo (!) – Suplemento Cultural , é claro –, escrevi uma nota sobre a poesia de Manoel de Barros. Chamava-se “Ali onde nasce a linguagem”. Minha visão do poeta, sua vida e obra, continua fiel a este título. Ele era um poeta das coisas pequenas e das palavras ínfimas, aquelas destituídas de pompa e circunstância. Ele gostava mesmo de coisas como água e sapos, e detestava, ao que parece, aquelas coisas e palavras que de tão ditas não dizem mais nada: desaparecidas de seu sentido original. Foi-se ontem (13) deste mundo.

Cabem muitos adjetivos no espelho de sua poesia: modernista, surreal, mais-que-real, pantaneiro, mas ele permanece avesso a classificações. Claro, há uma moldura histórica em torno dele. Manoel de Barros é o poeta de um tempo em que o Brasil rural, em que ele nasceu, desapareceu, para dar lugar a esta confusão urbanizada de hoje, cercada pelo agrobusiness e pela agricultura familiar, esta disputa tanto pela terra como por estilos muito diferentes de vida. Neste mundo é que Manoel buscou a fonte de suas palavras, esgueirando-se pelas frestas que ele procurava em direção ao oráculo de onde brota a poesia.
E ele conseguiu. Cito alguns exemplos, com saudades do tempo em que ele vivia:

(…)
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
(…)
A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
– eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
O fazedor de amanhecer
Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
três máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.
(…)
A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

Glosando um de seus títulos, pode-se dizer que sua poesia cabe num só: “Tratado geral das grandezas do ínfimo”. Seria ela assim um espécie de grande épico das coisas miúdas, uma única composição/reminiscência de um tempo perdido mas guardado nas palavras. Algo assim como se um adulto, no meio da cidade grande, na esquina principal, abrisse um álbum de fotografias amarelecidas, não por nostalgia do que nelas está guardado ou sumido para sempre, mas pelo amor do gesto gratuito.

Dessa forma, ele se irmana na rima com Mário Quintana, e se faz um contraponto (não contrário, mas no sentido musical) a Drummond: Manoel de Barros é de fato o poeta de um mundo caduco, mas que de tão caduco faz sentido, porque lembra que às vezes caduco de fato é quem se perde na parafernália das coisas modernas a tal ponto de se transformar numa delas.