Dignidade

País precisa de mais fiscais, educação e consciência, afirma procurador que coordena combate ao trabalho escravo

Para ele, empresas não podem assumir posição de “cegueira deliberada”. E devem oferecer oportunidades dignas de trabalho

MPT-RS
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Mais de 200 trabalhadores foram encontrados em situação considerada degradante

São Paulo – Nos últimos dias, a repercussão do caso envolvendo trabalhadores e vinícolas de Bento Gonçalves (RS) ganhou dimensão nacional. Pela abrangência – o número de envolvidos superou o total de 2022 no Rio Grande do Sul – e por alguns comentários que revelaram preconceito, xenofobia e até aversão por políticas públicas. Para o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) Italvar Medina, à frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), o episódio reforça a necessidade de fiscalização. “Há mais de 1.500 cargos vagos de auditores, o que representa quase 50% do total”, afirma.

Mais do que isso, defende o procurador, é necessário implementar políticas públicas de educação e de apoio ao emprego, no sentido de reduzir a vulnerabilidade de boa parte da mão de obra, exposta inclusive a repetidas situações de exploração. No campo, uma “politica séria” de reforma agrária. Além do poder público, cabe a sociedade acompanhar de perto o problema. Isso vale para o empresariado.

Função social

Assim, observa Medina, não faz sentido uma associação patronal alegar desconhecimento, como aconteceu nesta semana. Cabe às empresas “fiscalizar os contratos e acompanhar o cumprimento dos direitos trabalhistas em sua cadeia produtiva, não podendo assumir uma posição de cegueira deliberada e lucrar altos valores à custa da exploração desmedida e sofrimento alheios”. O empregador tem “função social” e deve oferecer oportunidades dignas de trabalho, acrescenta.

Mais grave ainda foi a declaração de um vereador da vizinha Caxias do Sul contra os trabalhadores baianos. Depois, como costuma ocorrer nessas situações, ele, sob ameaça de cassação do mandato, gravou um vídeo dizendo-se arrependido. A fala minimiza, indevidamente, a extrema gravidade da escravidão contemporânea, busca culpabilizar as próprias vítimas pelos ilícitos sofridos, tem conteúdo preconceituoso e, para piorar, estimula a discriminação nas relações de trabalho, em ofensa à Constituição da República, à legislação e a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil” afirma o procurador.

A Procuradoria já havia constatado algum caso dessa envergadura antes na região?

O número de trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão teve crescimento significativo nos últimos dois anos, e foram vários os casos registrados durante esse período, em diferentes campos da economia. Esse caso chama a atenção por ter ocorrido, em uma única ação fiscal, mais resgatados do que a quantidade que houve no estado do Rio Grande do Sul inteiro no ano passado. Em 2022, houve 156 trabalhadores resgatados, destacando-se 26 resgatados em Serafina Correa, no ramo da apanha de frangos (como parte de uma grande operação nacional de combate ao trabalho escravo, a Resgate II). Oitenta resgatados em Bom Jesus, na colheita da maçã, e 16 trabalhadores agrícolas em São Borja.

A procuradora Ana Lucia González declarou que o episódio “acende um alerta sobre a necessidade de atuação focada em toda a cadeia produtiva da uva, que todo ano atrai para a Serra Gaúcha diversos trabalhadores em busca de emprego e melhoria de condição de vida”. O que pode ser feito daqui em diante para coibir modalidades abusivas de contratação?

É constante o trabalho do MPT e da Auditoria-Fiscal do Trabalho para garantir o respeito à legislação trabalhista. Além da constante conscientização da sociedade quanto à realidade do problema, uma das iniciativas urgentes para ampliar a força do combate ao trabalho análogo à escravidão seria a recomposição da rede fiscalizatória, dado o grande número de postos de auditores-fiscais do trabalho ainda em aberto.

Há mais de 1.500 cargos vagos de auditores, o que representa quase 50% do total de cargos, e não há concurso público para a carreira desde 2013. Além disso, é importante que seja reforçada a legislação para que as empresas efetivamente façam monitoramento de suas cadeias produtivas (inclusive com a ratificação, pelo Brasil, do protocolo à Convenção 29 da OIT, ainda não ratificado) e para que seja mais efetivamente inibido o uso de terceirizações como mecanismos de redução de direitos e barateamento e precarização da mão de obra.

Qual é a responsabilidade das empresas contratantes nesse processo?

A empresa terceirizada e as empresas tomadoras desse serviço podem ser responsabilizadas solidariamente. Há, nas relações de trabalho terceirizadas, o dever de fiscalização expresso na Lei 13.429/2017. Ademais, no caso, houve prática de ilícitos na terceirização, a qual redundou, inclusive, em crimes, como a redução de trabalhadores a condição análoga à de escravo. Nos termos do Código Civil, todos os que concorrem, por ação ou omissão, para um ato ilícito devem responder solidariamente por ele.

O MPT-RS reuniu-se com o proprietário da empresa responsável pela contratação da mão de obra. Essa empresa está colaborando com a apuração do caso, reconheceu sua responsabilidade?

Nota no site oficial do MPT-RS esclarece esse tema. (O procurador se refere à nota em que a Procuradoria informa que a Fênix quitou as verbas rescisórias, mas não aceitou pagar indenizações individuais, “por não reconhecer a ocorrência de trabalho em condições análogas à escravidão”. Assim, a investigação prossegue em inquérito civil.)     

Como o MPT e a Conaete recebem manifestação do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves relacionando possível falta de mão de obra local com benefícios sociais?

A manifestação contraria a legislação e busca, sem que isso faça qualquer sentido lógico, justificar a exploração de trabalho de nordestinos em condição análoga à de escravo a partir de uma suposta dificuldade das empresas para encontrar mão de obra local que aceite as condições de emprego por elas oferecidas.

Em primeiro lugar, não cabe às empresas alegar desconhecimento das condições de trabalho de seus terceirizados. Muito pelo contrário, elas têm, nos termos da lei, o dever de fiscalizar os contratos e acompanhar o cumprimento dos direitos trabalhistas em sua cadeia produtiva, não podendo assumir uma posição de cegueira deliberada e lucrar altos valores à custa da exploração desmedida e sofrimento alheios. Além disso, elas têm uma função social a cumprir e devem fornecer oportunidades de trabalho dignas, que respeitem a legislação, o que, certamente, também atrairia o interesse dos trabalhadores locais para possíveis contratações.

E em relação ao vereador de Caxias do Sul que fez declarações preconceituosas contra trabalhadores vindos de estados do Nordeste? Esse tipo de declaração não aumenta a tensão em um momento que se busca acordo e pacificação?

A fala minimiza, indevidamente, a extrema gravidade da escravidão contemporânea, busca culpabilizar as próprias vítimas pelos ilícitos sofridos, tem conteúdo preconceituoso e, para piorar, estimula a discriminação nas relações de trabalho, em ofensa à Constituição da República, à legislação e a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Em consequência disso, o MPT abriu, de ofício,  investigação em face do vereador.

Por fim, como vê o avanço das ações de combate ao trabalho análogo à escravidão no país, que no ano passado resgatou 2.575 trabalhadores de condições análogas à escravidão no país? Quais seriam os principais desafios?

Como dissemos, há uma necessidade urgente de recomposição da rede de fiscalização para fazer frente à intensidade dos novos desafios trazidos pelo cenário atual do trabalho, principalmente após mudanças legais registradas na última década, que resultaram em redução de direitos e maior precarização nas relações de trabalho.

A conscientização da sociedade e do empresariado é outro objetivo premente a ser buscado. Importante também a existência de políticas públicas que reduzam a vulnerabilidade social da população, pois a grande maioria dos trabalhadores resgatados em todo país é composta por pessoas com baixa escolaridade, muitas das quais analfabetas e que têm dificuldade de acesso ao mercado formal de trabalho.

Nesse sentido, medidas de fomento à educação de qualidade, à qualificação profissional, ao combate ao trabalho infantil, à promoção da empregabilidade e redução da informalidade nas relações de trabalho são muito importantes. No meio rural, também é necessária uma política séria de reforma agrária que, efetivamente, reduza a vulnerabilidade social dos trabalhadores no campo. Por fim, é importante que os estados coloquem em funcionamento Comissões de Erradicação do Trabalho Escravo que, efetivamente, façam o acompanhamento social de vítimas após o resgate, bem como de suas famílias, de modo a garantir que não venham a ser novamente exploradas.