Denúncia

Benedita da Silva: setores ‘perversos’ usam o Evangelho para projeto de poder

Aos 80 anos, Benedita alimenta esperança na reconstrução do país. Evangélica, ela critica os que usam religião como partido político e manipulam palavras da Bíblia

Lula Marques
Lula Marques

São Paulo – “Lamento profundamente que muitas igrejas evangélicas viraram partido político e elegeram políticos em todas as siglas que você possa imaginar. E essa disputa não tem nada a ver com religião, mas com projeto de tomada do poder e ocupação do espaço. Temos que encarar isso.” A observação é da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), que é evangélica. Em participação do programa Entre Vistas, da TVT, apresentado por Juca Kfouri, a deputada alerta que alguns segmentos evangélicos estão promovendo uma interpretação da Bíblia conforme lhes convém. E traduzindo o Evangelho como peça importante desse projeto de poder. “É para que possam eleger aqueles que eles ‘nomeiam’ abençoados enquanto outros são entregues ao apocalipse”, explica Benedita.

Ex-governadora do Rio de Janeiro – a única que não foi presa nas últimas décadas – Benedita foi também ministra (Ministra da Secretaria Especial de Trabalho e Assistência Social, 2003-2007). Batizada na Assembleia de Deus em 1968, Bené, como é chamada, foi vereadora carioca nos anos 1980 e depois deputada constituinte. Nos anos 1990 elegeu-se senadora. Mas marcou sua atuação por abraçar causas raciais, das mulheres e da população pobre contra a desigualdade – e não com pautas religiosas.

“Não é justo que façamos o que eles estão fazendo com os segmentos que não pensam igual a eles. A Bíblia não está nas mãos destas pessoas. Eles estão fazendo o que fazem perversamente”

Perseguição

Benedita da Silva, no entanto, diz que não está fácil a vida de religiosos que pensam fora dessa caixinha de perversidade. Ela denuncia um processo de perseguição dentro das igrejas, por exemplo, contra pessoas que participaram de encontro recente de evangélicos com o ex-presidente Lula, no Rio de Janeiro. “Um dos pastores que falaram disse que a igreja deveria pedir perdão para o Lula por tudo que estão fazendo com ele. Parou ali”, diz a deputada. Segundo ela, esse pastor teve de se desligar se sua igreja. “Teve que pedir demissão. Ele era presidente do Conselho Batista Carioca. Isso é um absurdo.”

“Teve uma outra pessoa que levou uma mensagem da Assembleia de Deus dos Últimos Dias. Outra cantou e encantou todos ali que se levantaram para bater palmas para Deus. Essa moça está sofrendo todo tipo de assédio, de agressão. Um bolsonarismo que virou uma seita. Não pode ser assim.”

A entrevistada de Juca Kfouri afirma que depois das eleições seja retomada a defesa do Estado laico. Para que igrejas e seus líderes que fizeram essa “perversidade” com a religiosidade seja questionada. “Eles querem que a verdade mentirosa que eles têm seja uma verdade para todos”, critica.

“Neste momento, temos que lutar, como estamos lutando, para que haja uma normalidade do Estado laico. Precisamos defender a democracia contra evangélicos e pessoas de qualquer outra religião que façam a cabeça dos membros. Que usem a igreja como passaporte ou cheque em branco para serem candidatos a alguma coisa. Ou formem aquele gueto, aquela seita, que passam essas falsas verdades que ferem o país e o Estado democrático de direito. Tudo isso é uma interferência”, afirma Bené.

Mulheres e manipulação

Benedita da Silva observa ainda a tentativa desses setores oportunistas do meio evangélico de manipular as mulheres e tratar o atual presidente como “enviado de Deus”. Ela rebate, dizendo que Bolsonaro não cuida da família brasileira. “Não cuida das mulheres para que elas tenham as mesmas oportunidades de trabalho, saúde e educação, e ainda combatem política de gênero e dizem que isso é um mal que temos hoje. Se você abrir a Bíblia, vai encontrar a palavra gênero. Nós, mulheres, temos que dar nosso grito de liberdade. Ainda estão em uma caixinha, fechadinha, dentro das igrejas. Pastoras, missionárias, estão saindo e fazendo uma nova leitura, porque sabem o que nós mulheres temos que fazer e os direitos que temos.”

Aos 80 anos, Benedita, já vendeu limões e amendoins nas ruas antes de se tornar auxiliar de enfermagem e, depois, assistente social. “Acabei de ver, pelas minhas andanças no Rio de Janeiro, uma jovem vendendo chiclete. Eu não estava com nenhum recurso no momento. Me deu uma dor tão profunda de ver uma criança vendendo chiclete nos dias de hoje”, lamenta. Mas afirma ter esperança de que o país pode se reconstruir e voltar a ter políticas de inclusão. “Sei falar daquilo que está ao meu redor. Minha vida na favela, minha vida como estudante, aos 40 anos de idade fiz faculdade. Sei falar de inclusão social, de movimentos sociais, de nossa juventude. Isso que marca minha trajetória”, disse a deputada.

‘Vem coisa boa por ai’, diz Benedita

“É preciso passar esperança. É o que tenho feito”, diz. “Tivemos um tempo muito bom. Um tempo em que o governo tratou de incluir socialmente, tratou de matar a fome de muita milhões de pessoas. Tivemos um governo que teve a coragem e a sensibilidade de construir um lar decente para as pessoas.”

Além da questão da pobreza, sua esperança de mudanças também envolve o combate à criminalidade, ao domínio das milícias no Rio de Janeiro e ao ódio na política. “A esperança não morre. Vem coisa boa por aí. Podemos recuperar. Vivemos grandes investimentos, grandes acolhimentos aqui. A questão da segurança é retrato do que vemos nacionalmente. Uma expansão da insegurança alimentada por um governo e sua indústria das armas”, disse.