Bolsonaro transformou Brasil em ‘campo de extermínio’, diz especialista
Sem ter o que comemorar neste dia, Brasil vive uma pandemia sem controle e a escalada de mortes, desemprego e fome. Mesmo assim governo corta recursos
Publicado 07/04/2021 - 12h04
São Paulo – O governo do presidente Jair Bolsonaro transformou o Brasil em um “campo de extermínio”, onde o novo coronavírus tem salvo conduto para se espalhar com velocidade e fazer um número crescente de mortes, que já chega a quase 4 mil pessoas por dia, em média. O alerta é da médica sanitarista Lúcia Souto, presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), que neste Dia Mundial da Saúde só vê motivos para lutar.
“O Brasil tem 3% da população mundial. Porém, 33% das mortes diárias pela covid-19 são registradas no país, o que é uma grande desproporção. É uma consequência da falta de coordenação nacional da pandemia, que é premeditada. Não há auxílio financeiro às populações vulneráveis, que já enfrentam o desemprego, a fome e a doença diante de um claro aprofundamento da desigualdade. Tanto que é entre os pobres que a covid-19 faz mais vítimas”, disse Lúcia, em entrevista à RBA.
O “campo de extermínio”, segundo ela, poderia ter sido evitado com medidas conhecidas, já adotadas em países com melhores resultados no controle da pandemia. É o caso do Vietnã, que, com pouco mais de 90 milhões de habitantes, registrou 35 mortes. O Brasil tem 211 milhões e já passou dos 330 mil mortos. O governo vietnamita impôs o lockdown e hoje vacina a sua população. Além de não adotar a mesma estratégia, o Planalto entrou em conflito com governadores e prefeitos que defenderam a alternativa, foi à Justiça contra eles e ainda demorou na compra das vacinas.
Lockdown com vacina
A vacinação segue lenta e ainda enfrenta ameaças do setor privado. Se conseguir autorização para comprar o imunizante direto dos fabricantes, estará enfraquecendo o Plano Nacional de Imunizações (PNI), uma das políticas de saúde brasileiras mais bem sucedidas.
“Para sair da atual situação, o Brasil precisa combinar lockdown com a vacinação em massa, para interromper a velocidade da transmissão enquanto pessoas vão sendo imunizadas. E para conter a fome, pagar auxílio emergencial de R$ 600 para todas as famílias vulneráveis. Mas não é o que está acontecendo, embora o país tenha condições de adotar todas essas medidas”, disse.
Para piorar a situação, o orçamento da saúde, aprovado na Câmara, não acompanha o agravamento da pandemia. Deixa de fora cerca de R$ 36 bilhões, correspondentes à complementação permitida pelo decreto do estado de calamidade, que não foi renovado para 2021. Sem ele, o orçamento volta a obedecer à Emenda Constitucional (EC) 95/2016, do teto de gastos. São recursos que farão falta na compra de vacinas, por exemplo. Ou na abertura de novos leitos. Pelas contas do Cebes, desde 2018 o SUS já perdeu R$ 22,5 bilhões devido à EC 95.
Cinco anos de retrocessos no SUS
Considerado “a marca do golpe”, o teto de gastos da União foi aprovado no primeiro ano do governo de Michel Temer (MDB-SP), em dezembro. A medida congela por 20 anos os investimentos nas áreas sociais. Com isso, mesmo que o PIB brasileiro tenha um grande crescimento no ano, o orçamento de cada área tem de ser o mesmo do ano anterior, corrigido apenas pela inflação. Por isso a EC 95 está diretamente associada à desestruturação do SUS a partir de 2016.
Na época, um estudo do Ipea estimou perda para a saúde da ordem de R$ 654 bilhões ao longo de 20 anos. Mas isso em um cenário conservador, com o PIB crescendo 2% no ano. Caso seja de 3%, a estimativa chega a R$ 1 trilhão de perda. Ou seja, De acordo com a Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o SUS já havia deixado de receber R$ 22,5 bilhões em 2019.
Logo que tomou posse, em maio de 2016, o governo já mostrou ao que veio. O ministro da Saúde, deputado Ricardo Barros (PR-PR) – atual líder do governo na Câmara –, defendeu o encolhimento do SUS ao tamanho do orçamento. Ou seja, em vez de trabalhar pelo aprimoramento do sistema para melhorar a assistência para todos, como manda a Constituição, propôs um SUS minguado, compatível com o orçamento que também passaria a ser mais e mais encolhido. Em síntese, um SUS pobre para a população mais pobre.
Sem internação e cirurgia
Pela lógica, a lacuna passa a ser preenchida pelo setor privado. Em 2017, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para definir modalidades dos chamados “planos populares”. Em geral, cobrem consultas e exames simples, deixando para o SUS ainda mais subfinanciado a cobertura de internações, cirurgias e procedimentos de alta complexidade. Pior para a população e para o sistema público, bom para os empresários do setor.
A Política de Saúde Mental também entrou no alvo com propostas que põem em risco conquistas da Reforma Psiquiátrica. Por meio da Portaria 3.588/2017, o governo Temer alterou regras da rede de atenção psicossocial, com o objetivo de fortalecer as internações em hospitais psiquiátricos e criar leitos em hospitais gerais. A proposta foi aprovada em 21 de dezembro de 2017, sem que a sociedade tivesse se manifestado.
No mesmo ano, o governo Temer publicou o documento “Coalizão Saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde”. Elaborado pelo Instituto Coalizão Brasil, visa a construção de um sistema de saúde em que os setores público e privado construam uma rede integrada de cuidados contínuos, que pressupõe maior participação da iniciativa privada na gestão dos serviços.
Saúde da família
Em agosto de 2017, sem debates com a sociedade e deixando de fora o Conselho Nacional de Saúde, o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) aprovaram mudanças na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB).
Na prática, tiraram do Programa de Saúde da Família e dos agentes comunitários o papel estratégico e prioritário para a expansão do acesso à saúde e alteraram o financiamento para este nível de atendimento básico, do qual fazem parte as unidades básicas de saúde.
Governo Bolsonaro
Em julho de 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, os planos de saúde enviaram à Câmara uma minuta de projeto de lei com 89 artigos. Em resumo, a proposta assinada pela Federação Nacional da Saúde (FenaSaúde) reivindica mudanças na atual lei do setor para favorecê-los.
Entre as propostas, a redução de coberturas e atendimentos, liberação de reajustes de mensalidades, fim do ressarcimento ao SUS e alívio às multas por maus serviços. Em resumo, tornar ainda mais insignificante o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A proposta, que tem simpatia do Congresso e do governo,
Em novembro, o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta anunciou alteração do modelo de financiamento da atenção primária – ou básica – à saúde. Entre as mudanças estão a forma de cálculo dos repasses da União aos municípios. Até então, a conta era feita com base no número de habitantes. Mas o governo Bolsonaro passou a se basear apenas no número de pessoas cadastradas nas unidades básicas de saúde. Municípios populosos, como São Paulo, devem perder metade do recurso.
Menos recursos e menos médicos
A atenção básica à saúde voltou a entrar na mira de Bolsonaro em 27 de outubro de 2020, por meio da publicação de um decreto autorizando o início de estudos sobre a possibilidade de conceder à iniciativa privada as Unidades Básicas de Saúde (UBSs). O anúncio mobilizou a sociedade, que prontamente repudiou a medida. “Não aceitaremos a arbitrariedade do presidente da República”, disse na época o presidente do CNS (Conselho Nacional de Saúde), Fernando Pigatto, em vídeo que viralizou.
Por questões ideológicas, o governo Bolsonaro extinguiu o programa Mais Médicos, perdendo mais de 8 mil profissionais cubanos. E vetou o processo de revalidação de diplomas nas universidades privadas, deixando parte da população sem assistência médica. Bolsonaro finalizou um processo que começou com Michel Temer. Um ano após o golpe, havia menos de 16 mil médicos. Em 2013, quando foi criado no governo de Dilma Rousseff, o programa levou mais de 18 mil profissionais às periferias das grandes cidades e aos municípios do interior.
Farmácia Popular
Iniciativa criada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Farmácia Popular distribui gratuitamente medicamentos para o controle da pressão alta, diabetes, asma e outras doenças crônicas muito comuns, associadas ao agravamento da saúde de pacientes com covid-19. Mas o programa vem sendo esvaziado por Bolsonaro.
No primeiro ano da pandemia, foram distribuídos medicamentos para 20,1 milhões de pessoas em todo o país. Uma diminuição de 1,2 milhão em relação ao ano anterior. O orçamento do programa, que em 2020 era de R$ 2,7 bilhões, caiu para R$ 2,5 bilhões em 2021. O número de farmácias parceiras também caiu em 2020, passando para 30.988 unidades. O menor patamar desde 2013.
Mortes precoces
Em meio a tantos retrocessos, é de se supor um aumento das mortes precoces, causadas por doenças infecciosas e deficiências nutricionais até 2030. De acordo com um levantamento do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), em colaboração com pesquisadores da Universidade de Stanford e do Imperial College de Londres, esse aumento deverá ser da ordem de 8,6%. O número equivale a um aumento de quase 50 mil óbitos considerados evitáveis.