Para comerciante, prefeitura de São Paulo enxerga região da Luz ‘com cifrão nos olhos’
Para lojistas da Santa Ifigênia, projeto de revitalização da Luz ignora pessoas e privilegia especulação imobiliária
Publicado 26/04/2011 - 16h11
Demolições de estabelecimentos comerciais e prédios residenciais são pesadelo de quem mora ou trabalha na Luz (Foto: Maurício Morais/Rede Brasil Atual)
São Paulo–- Na esquina da padaria cinquentenária de seu Duarte, o croqui do projeto de revitalização da região da Luz – batizado de Nova Luz – prevê um prédio de vários andares. O dono descobriu o que a prefeitura ensaia para o seu terreno quando visitava o site do projeto. No local, atualmente, os únicos três andares existentes são a sede da Casa Aurora, que reúne padaria, restaurante e pizzaria em mil metros quadrados da histórica rua de mesmo nome.
Duarte Maurício Fernandes é um dos milhares de comerciantes e lojistas surpreendidos pelas mudanças na região previstas no projeto da Nova Luz. Entre as alterações urbanísticas que a prefeitura pretende efetuar na região estão a demolição e desapropriação de até 60% dos imóveis, além de construções e reformas.
Dados da Câmara de Dirigentes Lojistas da Santa Ifigênia indicam pelo menos 15 mil CNPJs na área que inclui centros de comércio como a rua Santa Ifigênia, conhecida nacionalmente pelo comércio de produtos eletrônicos e a rua Duque de Caxias marcada por produtos e serviços automotivos.
“Nunca fomos procurados ou consultados sobre esse projeto”, aponta Fernandes. “A grande maioria (dos lojistas) ficou sabendo no boca a boca e no site do consórcio”, revela em alusão ao grupo de empresas que venceu a concorrência aberta pela prefeitura da capital paulista para elaborar o projeto urbanístico.
- O projeto de revitalização da Luz foi aprovado pela lei 14.917/09 e dividido em duas etapas, ambas licitadas pela prefeitura para empresas particulares.
- Na primeira etapa, que deve terminar em maio deste ano, as empresas do consórcio Concremat, Companhia City, AECOM e FGV, que venceu o processo licitatório realizaram o projeto urbanístico da Nova Luz.
- A próxima etapa ainda depende de licitação e escolherá a empresa ou grupo que vai realizar desapropriações, construções e poderá comercializar os imóveis na área.
- Fazem parte do projeto de intervenção urbanística a área delimitada pelas avenidas Cásper Líbero, Ipiranga, São João, Duque de Caxias e rua Mauá.
“Lógico que não houve consulta. Essa é nossa briga”, afirma Joseph Hanna Fares Riachi, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas.
Sem informações sobre o futuro da região e do próprio negócio, que dirige há 25 anos, Fernandes critica o descuido dos órgãos públicos municipais com o bairro ao longo dos anos e demonstra receio sobre o recente interesse pelo local. “A prefeitura enxerga a região da Luz com cifrão nos olhos”, dispara. “Isto é mais do que um negócio, é a vida da minha família e mais de 60 pessoas”, diz o engenheiro, que trocou a carreira de engenharia pelo negócio da família.
Cheia de história e perto de completar 50 anos, a Casa Aurora passou por reforma há dois anos. Os funcionários de Fernandes, muitos há décadas na região, retomam histórias de Adoniran Barbosa e sua preocupação com as demolições de casarões da Luz já na década de 1950.
Na reforma, as paredes da Casa Aurora ganharam azulejos novos e os mais de quatro mil clientes que passam diariamente pelo local são atendidos em balcões de mármore brilhante e em cadeiras novas. O forno de pizza e a cozinha foram feitos sob medida para o empreendimento. No segundo andar funciona uma cozinha industrial e no terceiro, um depósito de materiais. Todos os espaços foram reformados e preparados para atender as necessidades da padaria.
Depois de investir milhões na reforma, por meio de vários financiamentos, Fernandes disse que não há garantias por parte da prefeitura sobre o futuro de seu negócio. Ele também questiona porque não foi notificado pela prefeitura sobre a previsão de demolir prédios e mudar as ruas quando obteve autorização do próprio município para a reforma.
Muitas perguntas, nenhuma resposta
O primeiro documento oficial sobre as mudanças no bairro chegou em abril deste ano à Câmara de Dirigentes Lojistas, diz Riachi. Desde janeiro, quando os rumores sobre o projeto ficaram mais intensos, os lojistas correm para entender o que vai acontecer com a região. Três audiências públicas foram solicitadas pelos comerciantes e moradores, mas pouco foi esclarecido.
“O secretário não responde nossas perguntas. Se ele sabe o que vai ser feito, está escondendo e a gente vai lamentar muito se for isso”, diz Riachi.
As constantes indefinições e a falta de informações sobre o projeto levantam desconfianças dos lojistas. “Como você adere a um projeto que você não sabe o que é e não sabe quem você é no projeto?”, pergunta. “Nenhum documento foi gerado desde que estamos conversando com a prefeitura. Faltam garantias”, alerta o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas da Santa Ifigênia.
Uma possível alternativa ao consórcio que será escolhido para implantar o projeto é a remoção paulatina dos lojistas para demolição, construção de novos prédios ou reforma dos que forem mantidos. Mas a alternativa também desagrada a maioria dos donos de estabelecimentos na região.
“Numa mesa de negociação com o secretário, houve várias sugestões e uma delas, a que menos choca, seria essa mudança paulatina”, conta Riachi.
Um dos problemas nesse caso seria o tempo para realizar as transferências, demolições e novas construções de uma região de mais de quarenta quadras. Riachi calcula em mais de 40 anos o tempo para os lojistas da Santa Ifigênia serem realojados. “São sete travessas, 14 quadras, mais ou menos três anos para cada quadra ser demolida, reconstruída ou reformada e devolver a empresa, então isso pode levar 45 anos”, mensura.
O longo período em obras não é o pior temor dos comerciantes. Para Fernandes, da Casa Aurora, mudar temporariamente seu negócio é inviável e pode levar ao fechamento de seu negócio, além de demissões. “Como se transfere uma padaria temporariamente e depois se traz de novo para o mesmo lugar”? é a dúvida de Fernandes. O comerciante afirma que questionou os técnicos da consórcio durante uma das audiências realizada graças à pressão de lojistas e moradores. Mas a resposta foi insipiente. “Deram aquela resposta que não diz nada: é um assunto para ser pensado”, conta. “Eu sou engenheiro e não sei fazer isso”, constata.
Negócios como a padaria de Fernandes, dependem do ponto e não podem ser mudadas sem extremo planejamento, alerta o comerciante. “Não dá para tirar o mármore daqui, ele quebra, vai para o lixo”, explica.
O desencontro de informações ou a falta delas soa para os comerciantes como desprezo da prefeitura com quem mora e trabalha na região. “Nós estamos dispostos a revitalizar. A gente agradece a ajuda da prefeitura, mas não do jeito que estão fazendo descartando a gente”, diz Riachi.
“Nunca nos deixaram construir os prédios que desejávamos, agora a prefeitura quer fazer isso no nosso terreno e nos tirando do lugar para vender para outros”, comenta o dirigente lojista, em tom de revolta.
“Parece que alguém pegou o Google, olhou por cima, viu que tipo de construção existia e começou a elaborar coisas, sem se preocupar com o quê e quem estava por baixo, sem se preocupar que este é o mais antigo bairro de São Paulo”, analisa Fernandes. “Não é você olhar um prédio de dois andares e pensar que dá para construir um de 20 (andares) no lugar”, pondera o comerciante.
Degradação planejada
Ao lado da frustração e do medo de perder negócios que começaram há várias gerações ou do receio de perder as moradias, não são raras as manifestações de que a degradação do bairro foi planejada para desvalorizar a área.
“Nâo posso afirmar, mas que dá para pensar dá, afinal você compra degradado e depois vende a preço de caviar”, avalia Fernandes. “Porque quando a presidenta veio aqui na região não havia nenhum dependente na rua?”, é mais uma das indagações de Riachi.
Para o líder dos lojistas, os dependentes químicos que coabitam na região conhecida como cracolândia, que faz parte do bairro, são “massa de manipulação” e desculpa para desvalorizar o local.
“A Santa Ifigênia é uma marca conhecida nacionalmente, não é justo a região e essa marca pagar por isso”, afirma. Segundo Riachi, a região é a segunda maior arrecadadora de impostos do estado de São Paulo. “Nós fizemos uma marca muito famosa, gostaríamos que a prefeitura respeitasse isso e não jogasse na nossa cara os dependentes. A prefeitura tem responsabilidade sobre isso”, esclarece.
A degradação forçada da área também reflete a nomenclatura do projeto e o novo nome que querem impor ao bairro, acredita o líder dos lojistas. “Projeto de revitalização é um erro, porque não falta vida à região. É só andar pelas ruas”, diz.
“Pelo simples fato de descartarem o nome e a marca do bairro de Santa Ifigênia, conhecido no mundo inteiro, chamando de Nova Luz, já desestrutura o comerciante, o futuro investidor e qualquer melhoria”, complementa Riachi.
“A construtora escolheu o lugar, não foi a prefeitura”, resume. “Porque aqui não tem enchente, vai sair mais uma linha de metrô e reúne as melhores condições para se trabalhar e morar, porque é perto de tudo”, avalia o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas da região.
Indenizações de 30%
Comerciantes e prefeitura também não se entendem sobre possíveis indenizações no caso de retirada definitiva de estabelecimentos.
A prefeitura quer pagar 30% a título de fundo de comércio, os lojistas pleiteiam, quando for o caso, valor que leve em conta o faturamento, o imóvel e o valor da marca. “Você pega uma loja de 25 anos, faturamento de 1 milhão por mês e lucro de 250 mil, além do valor da marca, e a prefeitura quer pagar 30% do valor do prédio? Onde está a honestidade!”, indigna-se Riachi.
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