Jantar de arrecadação vira noite de desagravo a Erundina

Políticos, professores, escritores e admiradores comparecem a evento para livrar da penhora os bens da ex-prefeita

Está altiva e sorridente. Chega, com saltos altos, e é saudada por todos. Faz questão de cumprimentar um por um e, a cada um, ri de si. A debutante da noite em um hotel da região central de São Paulo não tem 15 anos. A caminho dos 75, Luiza Erundina debuta na seleta lista de políticos que têm algo a devolver aos cofres públicos.

Os amigos e os admiradores não se reúnem para comemorações, mas para um ato de desagravo à ex-prefeita paulistana. Entrou na fase final a ação movida por um cidadão que se sentiu ofendido com o apoio dado por Erundina à greve geral de 1989. Na ocasião, a publicação de um comunicado de 26 centímetros em três colunas da Folha de S. Paulo esclarecendo o porquê de seu apoio ao movimento dos trabalhadores gerou irritação em Angelo Gamez Nunez.

Transformada em ação popular, a irritação do advogado materializou-se, 20 anos depois, na penhora de todos os bens da deputada, que agora mora em um apartamento que não é mais seu e dirige um carro que não lhe pertence.

Perto dos 75, Erundina está recomeçando. Como na música dos Beatles, ela consegue com uma pequena ajuda dos amigos, que chegam de todas as partes.

Do lado de fora do salão, uma brisa alivia o antecipado verão paulistano. Por isso, ou por vergonha, os convidados arroz-de-festa preferem ocupar as mesas que rodeiam a piscina do hotel. As árvores, a bossa nova que vem de dentro do salão e a meia-luz tratam de impor o ritmo de calmaria ao início de celebração. Em seu metro e não muito mais que meio, a deputada desaparece no meio das rodas de amigos que se juntam para abraços.

De repente, surge ao celular uma mulher de cabelos voadiços explicando o motivo da celebração a alguém que, do outro lado da linha, parece concordar com a causa: “é um jantar para arrecadação de dinheiro. Teve uma ação em 89 e agora ela está com os bens penhorados. Ela nunca fez nada de errado. Só neste país mesmo”.

É com isso que concordam todos os presentes – caso contrário, não estariam ali. Por isso, desembolsam ao menos R$ 100 por cada ingresso. Todos sabem que não será suficiente para saldar os R$ 350 mil que Erundina deve dar aos cofres públicos, mas entendem que a ação é importante para garantir à deputada a defesa de uma rara reputação de honestidade na política brasileira.

“Sabemos que a condenação de Erundina é exatamente sua virtude. Fosse ela uma pessoa convencional da política, não precisaríamos estar aqui fazendo um jantar por ela”, discursa o deputado federal José Eduardo Cardozo (PT-SP), que logo ganha o aval da anfitriã, que destaca que a sentença é uma situação afirmadora de seu compromisso com a ética.

Marilena Chauí, filósofa e professora da Universidade de São Paulo que esteve à frente da Secretaria de Cultura na primeira gestão do PT na capital paulista, entende que Erundina democratizou a gestão da cidade e foi a primeira a lembrar da periferia com ações em saúde, transporte e educação. “Ela instituiu o princípio da probidade pública sem questionamentos. Cada vez que havia qualquer deslize em termos de probidade, ela demitia. Nunca houve contemplação com o uso privado da coisa pública, por mínimo que fosse. Sinto uma revolta, uma cólera sem tamanho”, afirma. 

Padrão ético

– Você me apronta cada uma, Luiza – brinca Dalmo Dallari assim que chega. Professor da USP e ex-secretário de Negócios Jurídicos da administração do PT, ele não tem dúvidas de que se trata de uma injusta decisão. Um dos maiores juristas do país, Dallari entende que se trata de uma pessoa de padrão ético “elevadíssimo” e absolutamente inatacável.

“É uma pessoa que jamais procurou tirar qualquer proveito da causa pública. Com sua mais absoluta honestidade, simplesmente sacrificou sua própria vida. Não fez um patrimônio, não se preparou para a velhice. Essa condenação é uma brincadeira de mau gosto.”

Circulam pelas mãos dos convidados cópias do tal comunicado que hoje custa-lhe R$ 350 mil. Em algumas paredes, há colagens inteiras da Folha daquele 17 de março de 1989. A primeira página, além do comunicado de Erundina, tem destaques para a greve geral, apontando que a Central Única dos Trabalhadores (CUT) “vinha se mantendo arredia a negociações antes da greve geral de dois dias realizada esta semana”, e um pequeno espaço que anuncia um editorial que condena a paralisação dos serviços de ônibus de São Paulo, atitude que, na avaliação do jornal, feriu o direito de locomoção da população.

O jornalista Luis Nassif, que se lembra que Erundina já havia provocado reações de solidariedade parecidas no fim da década de 80, lamenta que o modelo político brasileiro seja tão restrito para que não haja espaço para pessoas como a ex-prefeita. “O grande juiz nunca pega a letra fria da lei, mas quem quer pegar no pé vai pela letra fria. Ela foi condenada por alguém que não tem senso de Justiça. Mas por outro lado é ótimo porque traz à tona o imenso carinho que o Brasil tem por ela”. 

Do lado de dentro do salão, Anita Freire, esposa de Paulo Freire – secretário de Educação da gestão da ex-prefeita –, considera que parte da sentença tem a ver com a relação opressores-oprimidos que tanto frequentou os textos do educador. “Paulo e Erundina estiveram a favor das classes oprimidas e espoliadas”, avisa.

“O Judiciário no Brasil é uma coisa vergonhosa. Há pessoas que ganham causas e a gente não entende o porquê. É uma Justiça em que o presidente do Supremo Tribunal Federal vai todos os dias à televisão se manifestar”, lamenta.

Após o discurso, Anita Freire anuncia que vai doar à causa alguns papéis no mínimo valiosos. São manuscritos do educador tecendo elogios a Erundina, que logo refuta a sugestão de um leilão e anuncia que vai promover um sorteio “com toda a transparência” entre os que compareceram ao jantar.

Jantar que, aliás, reuniu gente de todos os gêneros. Passaram por aqui Antônio Abujamra, crítico e diretor de teatro, ex-secretários de Erundina, vereadores, deputados, professores, jovens aspirantes à política. 

Passa também o filósofo Mario Sérgio Cortella, que considera que a noite consagra a condição “verdadeira e amorosa” da deputada e a “visão de ética” equivocada do Judiciário. “É perigoso miopizar a realidade. Miopizar significa trabalhar com a ética na qual se imagina que aqueles que defendem a decência como condição mais forte ficam mais indefesos porque não fazem acordos que não gostariam de fazer, porque não estabelecem estruturas e contatos que os deixariam protegidos”. 

Enquanto isso, Luiza Erundina mostra vitalidade no discurso. Eleva a voz, entona raiva, derrama suas convicções sobre um público que assiste entre silêncios e aplausos.

– Por esses dias, estava relendo o artigo para ver se faria diferente, se aliviaria um pouco a fala. Talvez meus advogados não gostem do que vou falar, mas faria do mesmo jeito. Não foi uma decisão administrativa, não foi uma decisão técnica, foi uma decisão coletiva.

E logo o salão se esvazia ao som de “O bêbado e o equilibrista” e “Eu sei que vou te amar”. Chega ao fim, em tom de sucesso, o primeiro jantar de apoio a Erundina. No fim, o sentimento dos amigos é de que a sentença que marcou uma injustiça na trajetória da ex-prefeita serve para fazer justiça a seus atos. Outros jantares virão. Enquanto a dívida não for saldada, outros virão. 

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