Ações policiais não resolvem problema da Cracolândia em SP, aponta especialista

São Paulo – A intensificação de operações policiais na região da Luz, conhecida como Cracolândia, no centro da capital paulista, não deve ter resultado efetivo no combate ao crack se […]

São Paulo – A intensificação de operações policiais na região da Luz, conhecida como Cracolândia, no centro da capital paulista, não deve ter resultado efetivo no combate ao crack se não for acompanhada de medidas terapêuticas e preventivas. A avaliação é da psiquiatra Ana Cecília Roselli Marques, pesquisadora do Instituto Nacional de Políticas sobre Drogas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).  

A pesquisadora analisa que as ações de repressão de forma isolada, sem os cuidados de saúde, podem levar os usuários a quadros graves de abstinência e até a episódios de extrema agressividade. Também pode levar ao deslocamento da cracolândia para outras regiões.

”Sem o encaminhamento para centros de recuperação, a ação policial pode ter resultado nulo”, analisou a psiquiatra. Na ausência de tratamento adequado, a abstinência também tem repercussões na saúde dos dependentes. “Ele pode ter uma abstinência tão grave e até uma sequela”, menciona. 

Outra consequência da ação de repressão policial, desvinculada dos cuidados com a saúde dos dependentes, pode ser o deslocamento do consumo de drogas para outro local. “O jovem vai sair dali, não vai aguentar abstinência, vai migrar, a gente vai ter outras cracolândias, se não houver tratamento adequado para os dependentes”, diz a especialista.

Insuficientes

Para a pesquisadora só a repressão aos traficantes ou só o tratamento são insuficientes. “Uma política integral para o crack é uma emergência para qualquer governo que tenha a situação que estamos enfrentando hoje no Brasil”, alerta. 

A psiquiatra diz que, no mínimo, são necessárias três ações básicas para combater o crack. O tripé contra a droga, segundo ela, é composto por ações de redução da oferta. “Isto é repressão mesmo e fiscalização permanente”, diz. Somadas à redução da demanda com um tratamento fundamentado por boas práticas e reinserção dos pacientes, além da prevenção. “Sem dúvida, a repressão é imprescindível, pois o traficante é filmado de papo na rua, aparece na televisão, vira quase uma celebridade”, descreve.

“A reinserção é essencial porque não adianta tratar e depois o dependente voltar à rua. Ele precisa ter lugar para morar, oportunidade de trabalho, de conseguir um grupo, ou reencontrar sua família, ter direito de não usar drogas e tentar voltar ao equilíbrio “, aponta Ana Cecília.

Além do tripé, uma política integral de combate ao crack passa pela participação da comunidade. “Se não, não vai adiantar construir uma clínica igualzinho ao modelo de outro país”, indica.

Pessoalmente, ela diz que se tivesse recursos, colocaria uma boa parte do financiamento na prevenção, junto a crianças e adolescentes, para evitar novos dependentes. Em segundo lugar, investiria no controle do tráfico, na proibição da propaganda de bebida alcoólica e no controle da venda para menores. A seguir, atualizaria o tratamento. “Proponho prevenção, repressão e o jovem no centro das preocupações; e é lógico, para aquele que já caiu nessa doença crônica gravíssima, o melhor tratamento”, reforça.

Primeiro, o álcool

Apesar da existência de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) na região da Sé, centro da capital paulista, que atende à região da cracolândia, Ana Cecília explica que os dependentes de crack “nunca chegavam lá”. A pesquisadora e outros profissionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) passaram um ano trabalhando no local, de fevereiro de 2009 a fevereiro de 2010.

Além do tratamento aplicado no Caps não estar de acordo com as necessidades, ela chama atenção para mitos que afastam os usuários do crack do tratamento. “Existe uma visão muito antiga sobre os usuários, de que eles têm um problema moral, e que nada vai conseguir modificá-los. O próprio usuário sente-se envergonhado e foge do tratamento, pois muitas vezes acredita nisso (no problema moral)”, constata. “A dependência é uma doença crônica como diabetes, hipertensão arterial  e tem tratamento. Hoje, o tratamento estabiliza pelo menos 50% dos pacientes”, observa a pesquisadora.

O fácil acesso às drogas nas ruas também atrapalha o tratamento. “O paciente sai da sessão de grupo no Caps, atravessa a rua e vai no bar beber e o traficante ainda vende uma pedra para ele”, descreve.
 
Embora os tratamentos estejam cada vez melhores em todo mundo, Ana Cecília avalia que no Brasil “ainda  estamos muito defasados”. “Muitas vezes a abordagem caminha em sentido contrário”, indica. Ela também alerta que além de controlar o aumento do uso de crack, é preciso combater o álcool. “O jovem não começa com crack, começa sim, com tabaco e álcool”, enfatiza.

“O enfrentamento do crack depende de organizarmos uma política para o álcool”, contextualiza a psiquiatra. “Quem dita a política do álcool é a própria indústria. Eles que definem tudo, preço do produto, controlam qualidade do produto disponibilizado nos bares. Qual de nós, da saúde, controla qualidade do tratamento que é oferecido?”, indaga. 

Questão de mercado

A disseminação do uso de drogas como o crack também passa por uma questão de “mercado”. “A droga virou um produto qualquer e é vendida com todas as regras de mercado: se mistura para ter mais drogas e vender mais.”

Na análise de Ana Cecília, o crack não se expandiu mais que outras drogas e agora vive sua segunda onda de expansão. A primeira ocorreu em 1985, quando a droga chegou ao Brasil. A segunda começou em 2000 e permanece até o momento.

Na história das drogas, ela cita que em 1880, quando foi criada a primeira máquina para fazer cigarros, o tabaco se difundiu para o mundo. “O mundo também viveu a era do gin e a sociedade inglesa pagou o preço de não ter controle sobre a bebida”, cita.

“A economia das drogas mostra um lucro tão grande quanto à economia ligada às armas e petróleo”, critica. “O problema não é simples, mas precisa ser modificado. Da forma que está não pode ficar”, diz  Ana Cecilia.