estado conivente

Raquel Dodge considera que isenções fiscais aos agrotóxicos são inconstitucionais

Para procuradora-geral da República, ao conceder isenção às indústrias o Estado fomenta o uso de agrotóxicos e assim descumpre o dever constitucional de preservar a saúde e o meio ambiente

Arquivo/EBC

Maior consumidor mundial de agrotóxicos, Brasil concede benefícios tributários aos fabricantes desses produtos

São Paulo – A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, considera inconstitucionais benefícios e isenções fiscais e tributárias concedidas aos agrotóxicos. Em parecer de 46 páginas emitido na última terça-feira (17), ela destaca que o ordenamento constitucional internacional demonstra preocupação com a utilização dos agroquímicos, impondo severas restrições à produção, registro, comercialização e manejo, com vistas à proteção do meio ambiente, da saúde e, sobretudo, dos trabalhadores.

A manifestação da PGR refere-se à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.553, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol) no Supremo Tribunal Federal (STF), contra duas cláusulas do Convênio 100/1997, do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), e dispositivos da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados (Tipi), estabelecida pelo Decreto 7.660/2011 que beneficiam a indústria dos agrotóxicos.

A primeira cláusula questionada é a que reduz 60% da base de cálculo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de agrotóxicos nas saídas interestaduais. A segunda autoriza os estados e o Distrito Federal a conceder a mesma redução nas operações internas envolvendo agrotóxicos. Já o decreto concede isenção total de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) aos agrotóxicos.

Contramão

Segundo o parecer, os instrumentos tributários no país percorrem o caminho inverso. “Eis que, ao estipularem benefícios fiscais aos agrotóxicos, intensificam o seu uso e, portanto, sujeitam o meio ambiente, a saúde e a coletividade dos trabalhadores aos perigos inerentes ao manuseio em larga escala”. 

Raquel destaca ainda que “o magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal inclina-se a dar preferência ao direito ao meio ambiente, quando necessita ponderá-lo com outros interesses coletivos”.

E que, ao “fomentar a intensificação do uso de agrotóxicos, o Estado descumpre importante tarefa de extração constitucional, referente à preservação do meio ambiente e afronta diretamente a melhor compreensão do princípio constitucional do poluidor-pagador”.

Portanto, segundo a procuradora-geral da República, o incentivo fiscal endereçado aos agrotóxicos “traduz prática contrária aos ditames constitucionais de proteção ao meio ambiente, sobretudo dos trabalhadores”.

Para o professor de Direito Ambiental João Alfredo Telles Melo, do Centro Universitário 7 de Setembro, de Fortaleza, Raquel Dodge não só acolheu os pedidos e o embasamento da ação proposta, como trouxe mais elementos tanto de ordem fática, como doutrinária e jurisprudencial.

O professor, juntamente com outros advogados da Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares (Renap), escreveu a peça apresentada pelo Psol ao STF a partir de orientações da professora de Medicina Raquel Rigotto, coordenadora do núcleo Tramas da Universidade Federal do Ceará (UFC) e uma das maiores pesquisadoras sobre os agravos dos agrotóxicos à saúde e ao meio ambiente.

“A luta agora é garantir que a Suprema Corte acolha o parecer favorável da PGR e possamos acabar com essa imoralidade que são os benefícios fiscais aos agrotóxicos”, disse Melo, destacando a luta do camponês José Maria do Tomé contra as pulverizações aéreas de agrotóxicos em Limoeiro do Norte, no Ceará, que acabou assassinado em 2010, com 25 tiros. Outra vítima lembrada é Vanderlei Matos, que morreu muito jovem, vítima de câncer desenvolvido pela exposição aos agrotóxicos no seu ambiente de trabalho.

No início do mês, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) ingressou no STF como Amicus curiae – pessoa ou entidade que apresentam argumentos em apoio a determinado entendimento de uma causa judicial – na ADI movida pelo Psol. Entre outras contribuições à defesa e pesquisa em saúde coletiva da entidade está o Dossiê Abrasco.

Integrante da Abrasco, Raquel Rigotto entende que foram determinantes na construção da ADI a interdisciplinaridade e a aliança entre a academia e os movimentos sociais. “Informações obtidas a partir de uma pesquisa na área da saúde foram levadas à cena pública por colegas, pesquisadores e movimentos sociais e do no campo do direito”.

E avalia que a ação incide diretamente sobre um campo estratégico: o econômico. “Se o STF referenda o parecer da procuradora-geral da República, nós teríamos a suspensão dessas isenções, e com isso uma elevação no preço dos agrotóxicos. Isso interfere nas condutas do campo econômico as vezes muito mais do que uma ação de fiscalização, do que medidas educativas, do que outros tipos de medidas.”

Porta jurídica

Coordenador do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, o procurador regional do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Pernambuco, Pedro Luiz Serafim, comemora o parecer. 

“Vislumbro o abrir de uma porta jurídica, em favor da sustentabilidade, para que o STF possa corrigir esta injustiça fiscal que prejudica o meio ambiente e a saúde pública no campo e na cidade”.

De acordo com Serafim, alguns países já dispõem de mecanismos para mensurar o custo ambiental e social, inclusive com a saúde e a Previdência Social, com cada tonelada de agrotóxicos lançados no meio ambiente.  “Inclusive para estabelecer instrumentos fiscais ou parafiscais de controle e contrapartidas a partir dos princípios da precaução e prevenção. No Brasil, nem sequer tributamos dentro da razoabilidade. Aliás, até carecemos de um sistema de notificação de agravos estruturado e confiável”, afirma.

O procurador lembra ainda que o Censo Agropecuário 2017, do IBGE, excluiu perguntas sobre o uso de agrotóxicos. “Isso pode ser a demonstração da falta de seriedade do governo com um tema tão grave, ou uma prova cabal de que as coisas estão instrumentalizadas para outro fim, no caso manter o uso indiscriminado de agrotóxicos e o envenenamento da mesa de todos nós.”

Serafim espera que o STF “dê uma contribuição histórica” em relação ao tema. E afirma “não ser razoável que medicamentos sejam tributados, às vezes com alíquotas expressivas, e agrotóxicos sejam isentos. Pior ainda no caso do cidadão pagar impostos de remédio usado para combater uma enfermidade produzida pelos agrotóxicos, o que vem acontecendo no país”.