Planejamento

Desafios Urbanos

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Planejamento

Plano Diretor de São Paulo aponta para adensamento de áreas com infraestrutura

Texto, que ainda pode ser modificado, busca guiar o processo de construção de habitação na cidade
por Thalita Pires publicado 10/05/2014 09h30, última modificação 10/05/2014 09h38
moacir lopes jr./folhapress

Há bairros e sistemas de transporte na capital paulista que não suportam mais usuários

O processo de revisão do Plano Diretor de São Paulo está chegando ao fim. O projeto já foi aprovado em primeira votação na Câmara dos Vereadores. A segunda e definitiva votação está programada para a última semana deste mês. Até lá, o texto poderá sofrer modificações, o que torna impossível uma análise definitiva do plano. Isso não significa que pontos importantes não possam ser levantados, tanto sobre o texto da lei como sobre seu processo de elaboração.

Em primeiro lugar, foi notável o esforço da administração em mobilizar a população para participar na elaboração do projeto. Foram realizadas 56 reuniões e audiências presenciais, além da possibilidade de enviar propostas pela internet. Quase 20 mil pessoas participaram. É sempre possível melhorar os processos de participação popular na administração pública. As audiências públicas são importantes mas não há nada que garanta que as demandas da população serão mesmo incluídas no texto. Dadas as limitações, no entanto, o saldo é positivo. Nunca houve tanta mobilização na discussão sobre o tema na cidade. Além disso, houve audiências adicionais durante a tramitação do texto na Câmara dos Vereadores.

Em relação ao texto, uma ressalva é importante. O Plano Diretor não é a única lei que regula os processos urbanos de uma cidade. Longe disso. Ele é um texto que define as estratégias do município para enfrentar seus problemas urbanos. A lei do zoneamento, o código de obras e edificações e a lei orgânica do município também contêm diretrizes importantes de regulação urbanística. É a conversa entre essas leis que definirá o que poderá ou não ser feito na cidade.

Essa alerta responde a algumas críticas que o plano vem recebendo. Uma das propostas que mais causou controvérsia é a possibilidade de maior adensamento habitacional ao redor de corredores de ônibus e estações do metrô. Há a avaliação de que isso seria um passe livre para que as construtoras façam a festa nessas regiões, construindo ao seu bel-prazer. Não deixa de ser curioso que vereadores que apoiaram a gestão Serra/Kassab levantem essa ressalva, mas o que importa é que, salvo engano, a única mudança nas prerrogativas dos construtores aconteceu na altura dos prédios nesses locais, que poderão chegar a 15 andares. Todos os outros requisitos, de todas as outras leis municipais, devem continuar sendo seguidos.

Essa é uma forma mais controlada – e não menos – de ocupação da cidade. Em vez de construções aleatórias em terrenos considerados valorizados, os investimentos serão focados nas áreas escolhidas pelo poder público, o que ajuda na possibilidade de planejamento dos investimentos em infraestrutura, além, claro, de aproveitar os equipamentos públicos de transporte já instalados. Essa regra abre também a possibilidade de diminuir a pressão para a construção nas franjas das cidades, já que, em teoria, o preço dos imóveis construídos nessas áreas pode ser menor, por conta do maior aproveitamento do terreno. Isso não vai eliminar disputas territoriais nem resolver a concentração fundiária na cidade, mas é uma situação melhor que a anterior.

Outra crítica a esse ponto é de que é uma regra muito geral. Há bairros e sistemas de transporte que não suportam mais usuários. Isso leva à apreciação de mais um ponto presente no projeto do Plano Diretor: a possibilidade de elaboração dos Planos de Bairros. Esses documentos seriam a aplicação do PD na prática, em nível local. O texto do Plano Diretor só pode ser geral, pois vale para toda a cidade. Nele estão os instrumentos que podem ser usados no território. Nos Planos de Bairros haveria a apreciação da pertinência ou não do uso desses instrumentos. Isso significa que o planejamento da cidade continuará a ser feito depois da aprovação do Plano Diretor. Por isso, o engajamento da população deve continuar. Ainda há muito o que se decidir em São Paulo.

Uma consideração final sobre o assunto: é gritante a falta de planejamento metropolitano em São Paulo. Essa é uma realidade brasileira, na verdade, com exceção, pelo menos em teoria, de Belo Horizonte. Não há legislação específica no país que exija o planejamento das funções urbanas comuns dentro das regiões metropolitanas e, embora os Estados possam interferir, pouco fazem. Assim, por melhor que seja o plano de São Paulo, a falta de coordenação de ações com as outras cidades será sempre uma lacuna. Como planejar o transporte e o saneamento em São Paulo sem pensar nos municípios vizinhos? Esse assunto tem que ser enfrentado por estado e União, pois os problemas metropolitanos existem aos montes, mas a estrutura político-administrativa do país não vem dando conta de resolvê-los.

Política

As crises de Alckmin

Problemas no sistema de abastecimento da Grande São Paulo e Metrô deveriam ser escândalos, mas não merecem mais do que notícias esparsas
por Thalita Pires, especial para a RBApublicado 29/04/2014 17h23, última modificação 29/04/2014 19h36
edson silva/folhapress
alckmin

Alckmin, apesar de todas as evidências de má gestão, continua respondendo às críticas de forma evasiva

O nível do Sistema da Cantareira, a maior fonte de abastecimento de água da região metropolitana de São Paulo, atingiu hoje (29) mais um recorde negativo: está operando com apenas 11% da sua capacidade.

Desde fevereiro o sistema vem apresentando sucessivas quedas em seu nível. Medidas para a diminuição do consumo, no entanto, demoraram para aparecer. Por cálculo eleitoral, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) descartou a possibilidade de aplicar o rodízio de água – pelo menos com esse nome – quando o nível da água ainda estava próximo dos 20%. Com o prolongamento da estiagem, o governo anunciou neste mês algumas medidas de incentivo à economia, enquanto prefeituras da região que não diminuíram o consumo foram punidas. É importante lembrar que, após as grandes chuvas do verão 2009/10, o sistema chegou a 100% de sua capacidade até dois anos atrás, de acordo com informações do próprio governo estadual.

Apesar de a crise ter estourado em fevereiro, a queda do volume do Sistema Cantareira é constante desde maio do ano passado. Por que medidas de precaução não foram tomadas com antecedência é uma pergunta que permanece sem resposta. O Ministério Público de São Paulo está investigando o caso.

O caos da água está longe de ser o único problema grave nos assuntos de responsabilidade do governo estadual. Há quase três meses, o Metrô de São Paulo passou por uma de seus dias mais críticos. Uma cascata de falhas e incidentes paralisaram a circulação das composições da Linha 3 – Vermelha no horário de pico da tarde. Além dos problemas na linha mais lotada da cidade e no pior horário possível, houve também uma falha da Linha 4 – Amarela, a mais nova da rede. Naquele dia 4 de fevereiro e nos subsequentes, a linha de resposta aos problemas da Companhia do Metrô e do governo do estado foi a de acusar a existência de um complô contra o sistema de trens e de chamar os usuários de vândalos. A Polícia Civil afirmou, no dia 15, ter aberto investigação contra seis pessoas por vandalismo, mas até agora nenhuma conclusão foi divulgada.

O que o usuário do Metrô sabe é que as falhas continuam acontecendo. Ainda em fevereiro pelo menos mais dois problemas aconteceram. No dia 26, uma composição da Linha 3 circulou por alguns minutos com as portas abertas. No dia anterior, trens da Linha 4 pararam na via a poucos metros de distância um do outro. Usuários publicaram fotos nas redes sociais onde era possível ver a proximidade indevida entre os trens.

A vida dos passageiros do Metrô continua em risco e esse fato continua sendo subapreciado pela população. Os defeitos são noticiados, mas não há esforço no noticiário para entender os problemas que vêm acontecendo de uma maneira ampla. E nem entro aqui nas suspeitas de corrupção na contratação de obras e compra de trens.

Da mesma forma, a grave crise de abastecimento de água na Grande São Paulo continua sendo encarada como um evento “natural”, que será revertido assim que as chuvas voltarem ao normal, se é que ainda se pode falar em normalidade do clima no mundo.

O governador Geraldo Alckmin, apesar de todas as evidências de má gestão, continua respondendo às críticas da mesma maneira: ou “todas as falhas serão investigadas” ou tudo se resume a “questões técnicas”. Ora, como não seriam? É evidente que há problemas técnicos a serem solucionados nos dois casos.

Esse tipo de resposta tenta tirar de suas costas a responsabilidade política tanto por um sistema que era o orgulho da cidade, mas que vem apresentando o maior número de falhas de sua história, quanto dos problemas de gestão da questão da água no estado. Se os problemas são técnicos, a decisão de como enfrentá-los é política. E é nesse campo que o discurso tecnicista vem vencendo. Ao tentar jogar para os técnicos a responsabilidade pela solução dos problemas, Alckmin se vende como administrador sério, que não se mete em questões ideológicas e permite que entendidos resolvam os problemas, sem espaço para questionamentos.

O governador sabe o que faz quando adota tal estratégia. Esse discurso tem grande apelo em São Paulo, estado que já o elegeu três vezes. Se deu certo antes, por que não daria certo de novo? Entretanto, é preciso desconstruir a ideia de que não há ideologia por trás dessa estratégia. Há, e muito clara: a do estado mínimo.

Decisão Judicial

O imbróglio do Plano Diretor em São Paulo

Audiências públicas de revisão do plano foram suspensas a pedido da Associação Preserva São Paulo. Alegação é falta de transparência e inclusão de emendas não discutidas
por thalitapirespublicado 18/04/2014 10h14, última modificação 19/04/2014 08h29
Moacyr Lopes Júnior/Folhapress
pde

Revisão do Plano Diretor é um processo que vem ocorrendo desde agosto do ano passado

O processo de revisão do Plano Diretor de São Paulo está sob xeque. Uma liminar concedida na terça-feira (15), respondendo a ação civil pública movida contra a Câmara Municipal pela Associação Preserva São Paulo, suspendeu as audiências públicas já programadas. As alegações constantes dos autos são de que o princípio da ampla publicidade às audiências não foi observado e que havia duas versões diferentes do projeto de revisão nas audiências dos dias 5 e 6 deste mês de abril.

Outra alegação é de que o texto estava sendo emendado à revelia do processo democrático. Jorge Eduardo Rubies, presidente da Associação Preserva São Paulo, afirmou que as audiências públicas “estavam repletas de irregularidades”. “Todos os dias eles estão mudando o texto. Um dia é um, no outro já mudou”. Há muitas maneiras de avaliar essa decisão. A mais óbvia é pensar em quem moveu a ação.

Quais os interesses da Associação Preserva São Paulo para tal movimento? Superficialmente, é difícil saber. A Preserva São Paulo tem como preocupação maior a conservação do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade. É uma causa válida, que está na disputa democrática como todas as outras. Se a intenção foi apenas aumentar a transparência do processo de discussão, faz parte do jogo. Entretanto, é difícil entender a lógica desta denúncia nessa fase de discussões.

A revisão do Plano Diretor é um processo que vem ocorrendo desde agosto do ano passado. O Executivo apresentou sua proposta e a colocou em discussão com a sociedade. Houve um número expressivo de audiências públicas, tanto territorializadas (por subprefeitura) como por eixos temáticos. As propostas apresentadas foram organizadas e inseridas – ou não – no texto do projeto. Agora, é a vez da apreciação por parte da Câmara Municipal. Há mais uma leva de audiências públicas, nas quais a população está novamente sendo ouvida. Não existe, durante as audiências, inserção de emendas para votação. Há, sim, a oitiva de sugestões.

O texto em formato de lei nem tem como ser elaborado em uma audiência. Após as audiências, as novas sugestões serão incorporadas de acordo com a apreciação do relator e vai a plenário. Como o texto que será votado ainda não está definido, fica difícil ter uma base sólida para dizer que emendas prejudiciais apareceram sem discussão. A discussão ainda está acontecendo.

Para esclarecer esse ponto, o blog tentou entrar em contato com a Preserva São Paulo, mas não obteve retorno. A alegação de que havia dois textos diferentes circulando nas audiências até agora não foi comprovada com a apresentação desses documentos. Por fim, é bastante difícil mensurar o que é a publicidade ideal para uma audiência pública.

A regra é que seja amplamente divulgada, mas na prática ninguém sabe bem o que isso significa. Qualquer decisão será tomada com base na interpretação da lei. Os dados divulgados até agora parecem apontar para uma falta de embasamento da acusação. Isso não muda o fato de que é possível fazer críticas consistentes ao processo de participação nas políticas públicas em todo o país.

Tirando as experiências com o Orçamento Participativo e com o SUS, há pouca participação efetiva na elaboração de política pública. Em todas as outras áreas, a população até fala e o poder público até escuta, mas não há nada que garanta que a opinião da maioria vá ser seguida. Os mais críticos dizem que essa seria apenas uma forma de legitimar decisões que serão tomadas sem levar em conta a vontade popular. Essa crítica pode ser repetida para a participação popular em qualquer lugar, na verdade.

A democracia representativa não costuma lidar bem com tentativas de utilizar instrumentos de participação direta. Em um quadro de crise de representatividade, que ficou claro nas manifestações de junho de 2013, esse tema pode ter mais reverberação na sociedade. Por fim, há ainda a discussão da pertinência da aposta coletiva que é feita em torno dos Planos Diretores no país. Esses instrumentos foram utilizados apenas pontualmente até a aprovação do Estatuto das Cidades, em 2001.

Os movimentos sociais de Reforma Urbana, por exemplo, nunca defenderam os PDs. Eles acabaram entrando na Constituição de 1988 por conta de negociações entre as bancadas e tornou-se, assim, o instrumento básico de planejamento urbano no país.

Ainda que haja muitos urbanistas que defendam os Planos Diretores, é um desafio encontrar, no Brasil, uma cidade que tenha transformado a sua realidade por conta da aposta nos planos.

Flávio Villaça, autor do livro As Ilusões do Plano Diretor, é um dos maiores críticos desse instrumento. Nomes como Nabil Bonduki e Raquel Rolnik, por outro lado, defendem sua importância. É uma pena, portanto, que as discussões sobre o Plano Diretor fiquem no nível do detalhe e não passem para a análise mais ampla da questão. O debate poderia ser rico e benéfico para a cidade.

Democracia direta

Orçamento Participativo aumenta investimento em saúde

O instrumento de gestão é usado em mais de 300 cidades do país com ganhos em saúde e organização social
por Talita Pirespublicado 10/04/2014 10h02
Ricardo Stricher/PMPA
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Orçamento Participativo de Porte Alegre entrega obras em 12 pontos da cidade

O Orçamento Participativo é a experiência brasileira em gestão pública mais famosa no planeta. Não há discussão sobre participação popular nos governos que não cite o exemplo pioneiro de Porto Alegre como um caso a ser estudado com atenção. Apesar do sucesso acadêmico e da aplicação desse instrumento por mais de 300 cidades no Brasil, o OP como bandeira política desapareceu. Nas eleições municipais, palco por excelência para o uso da ferramenta, o assunto não aparece. Mesmo dentro do PT, não há tanta paixão ao redor do tema.

Um estudo realizado pelos pesquisadores Michel Touchton e Brian Wampler, da Boise State University, nos Estados Unidos, mostra que os resultados do Orçamento Participativo dariam argumentos eleitorais consistentes. A pesquisa analisou 253 cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes que adotaram o programa entre 1989 e 2010. A análise mostra que, em média, esses municípios gastam 6% a mais do orçamento com saúde e saneamento do que aqueles que não têm o mecanismo. Quando são considerados os municípios com mais de 8 anos de implantação do OP, o aumento no gasto em saúde chega a 23%.

Para medir a efetividade desse investimento, os pesquisadores escolheram a mortalidade infantil como o indicador referencial. Aqui, o resultado é ainda melhor. Nessas cidades, os número de crianças mortas antes de completar um ano é 8% menor. Nas cidades que têm o OP há mais de 8 anos, a mortalidade infantil é 19% menor do que nas cidades que têm o mecanismo há menos de 4 anos.

Outro fator positivo, de acordo com o estudo, é o aumento da organização da sociedade civil nesses municípios. Esse era, aliás, um dos objetivos iniciais do OP tal como pensado e aplicado em Porto Alegre. Só agora, mais de 20 anos depois, os números começam a mostrar esse resultado. Cidades com OP têm um número do ONG’s 8% maior do que aquelas sem o programa.

Os números deixam claro que a participação da sociedade nas definições das prioridades dos municípios traz benefícios palpáveis, especialmente para as parcelas mais pobres da população. Fica claro, também, que a continuidade do OP melhora os resultados. Isso ocorre por conta do ganho progressivo de capital social nas localidades que contam com esse instrumento. O número de pessoas e organizações engajados nos processos de decisão aumentam com o tempo, assim como a prática e saber político.

Outro achado da pesquisa mostra que, por mais que vivamos tempos cínicos em relação aos mecanismos de representatividade, a política partidária tem papel na melhoria dos números. Cidades governadas pelo PT, partido que serviu como berço para o OP de Porto Alegre, tendem a ter resultados melhores que os de outras siglas. Prefeituras com prefeitos do PT que usam o modelo têm, em média, uma taxa de 23 mortes para 1.000 nascimentos. Em cidades que usam o OP, mas são governadas por outros partidos, esse número é de 26 por 1000.

Desde a criação, o Orçamento Participativo vem passando por análises e críticas diversas. Há a visão de que a parcela do orçamento disponível para a escolha da sociedade não é suficiente. Esse número varia em cada cidade, mas,  em média, é de 15%. Esse valor não seria suficiente para promover uma transformação em escala no território. Outra questão é que as decisões são tomadas dentro das subdivisões criadas para tal, sem diálogo com as outras. Isso significa que uma política mais geral é impossível por esse meio. O fato de apenas o orçamento e,  não decisões políticas, seja objeto de escolha, também pode ser criticado. Mesmo assim, o resultado parece ser positivo.

A proposição de mecanismos desse tipo, inclusive, parece estar em consonância com o espírito das manifestações de 2013, que tanta descrença mostraram na representação política. Um fórum para a escolha direta de prioridades faz sentido dentro dessa perspectiva. Esse poderia ser pelo menos um ponto de partida para o diálogo mais franco entre governos e população.

50 anos

Ditadura aprofundou desigualdades nas cidades

Periferização e repressão das lutas sociais foram algumas das marcas do período repressivo no contexto da urbanização
por Thalita Pires, especial para a RBApublicado 02/04/2014 13h10, última modificação 02/04/2014 15h01
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cidade

Com aumento rápido do custo da terra nos centros a população iniciou a periferização

O período da ditadura, que completou ontem (1°) 50 anos, deixou marcas aparentemente indeléveis na sociedade brasileira. Heranças como a violência institucional, o sistema educacional, leis e ideias que ainda vigem e, claro, a falta de punição aos responsáveis criam um imaginário social que pactua com valores pouco democráticos. Na seara do planejamento urbano, o período também pode ser considerado um desastre. Em que pese o fato de que foi na ditadura que os primeiros esboços de regulações urbanísticas gerais apareceram, a verdade é que as cidades incharam nesse período, sem que a massa trabalhadora recebesse os benefícios do avanço econômico.

As condições de vida nas cidades brasileiras nunca foi fácil, é verdade. A urbanização que conhecemos sempre deixou de fora a questão da moradia dos trabalhadores de baixa renda. Nesse caso, como em muitos outros, ignorar o problema só serviu para intensificá-lo. Na primeira metade do século 20 os bairros operários, em volta das fábricas, era uma realidade nas cidades mais industriais. Essa forma de moradia foi perdendo força com a valorização dos terrenos urbanos. Era impossível para os operários continuar morando em locais relativamente perto do centro, pois o custo da terra aumentava numa velocidade muito maior do que os salários. A forma encontrada pela população para enfrentar esse problema foi a periferização, os loteamentos irregulares e a autoconstrução.

Essa saída estava em consonância com os princípios econômicos do período da ditadura. O mantra de que primeiro o bolo deveria crescer para depois ser repartido significou, na prática, salários achatados, que trazia aos trabalhadores desafios diários de sobrevivência. Lúcio Kowarick, em seu livro A Espoliação Urbana, descreve com detalhes as condições precárias dos trabalhadores da cidade de São Paulo na década de 1970. É importante lembrar que, grosso modo, os anos da ditadura foram os que viram o maior processo de migração para as cidades. No período, a população de São Paulo aumentou de 3,6 milhões (1960) para 8,4 milhões (1980).

Kowarick mostra que a mortalidade infantil era de 62 mortes para 1.000 nascidos vivos em 1960 na cidade. Entre 1961 e 1965 o número aumento para 66. Nos anos entre 1966 e 1970 o numero foi de 79 e entre 1971 e 1975 a taxa era de 90 mortes para cada 1.000 nascidos vivos, ou seja, quase 10% das crianças morriam antes de completar 1 ano de vida. Para efeito de comparação, hoje esse número é de 11,3 mortes para 1.000 nascidos vivos. Esse dado tem relação direta com sérios problemas de nutrição da classe trabalhadora, assim como a falta de um sistema de seguridade social e de saúde.

Com o passar do tempo, a periferização trouxe outra questão que perdura até hoje nas cidades: a mobilidade (ainda que sem esse nome). Com uma massa sempre crescente de pessoas morando cada vez mais longe, o trânsito tornou-se um problema. Enquanto os mais pobres dependiam do ônibus para a locomoção – e também do metrô, a partir de 1974 – as classes mais ricas já passavam a enfrentar congestionamentos em seus carros.

Nenhum desses problemas foi causado necessariamente pelo fato de o Brasil viver uma ditadura. Qualquer um deles poderia ter acontecido sob regime democrático. No entanto, a repressão às organizações sociais em geral – tanto no âmbito do trabalho como no da vida cotidiana, campos que estão ligados na prática mas fragmentados nas lutas – é, sem dúvida, a marca mais forte do autoritarismo. Sindicatos e associações de moradores foram reprimidos de maneira violenta, estraçalhando uma organização social que ainda estava começando a se fortalecer. Esses 20 anos de luta apenas clandestina não chegaram a matar completamente as possibilidades de participação social na redemocratização, mas fizeram com que muitas lutas voltassem ao início.

Um balanço completo do efeito da ditadura nas cidades brasileiras não caberia neste espaço. Há ainda muito o que ser pensado a esse respeito. Mas uma conclusão parece inevitável. O processo de exclusão espacial das populações pobres no Brasil não começou em 1964, mas foi muito fortalecido nesse período. Esse processo histórico que deve ser sempre lembrado para que tenhamos claro que as cidades não são assim por força da natureza, mas por escolhas políticas. Só assim será possível fazer escolhas diferente e melhorar de fato as condições de vida das nossas cidades.

Mobilidade

Caos do transporte público afeta usuários e produz ‘sensação de fracasso’

Para a psicóloga Priscila Tamis, as situações limite vividas nos trajetos diários em São Paulo levam à uma ‘radicalidade do cansaço’
por Thalita Pires, da RBApublicado 15/03/2014 11h10
Diário CPTM / reprodução
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Ônibus e trens submetem diariamente população à indignidade e levam à reprodução da lógica da violência

Passar pelo menos quatro horas por dia no transporte público é trivial em São Paulo e outras capitais do país. Conjugadas ao tempo perdido, as condições desse transporte têm o poder de afetar de maneira importante a saúde dos usuários. Esse efeito acontece não apenas na saúde como conceito tradicional, mas também no seu sentido amplo, usado pela Organização Mundial de Saúde e pelo SUS. Essa definição entende que, mais que ausência de doenças, a saúde é uma condição de vida que permita ao sujeito um bem-estar físico, mental e social.

Com o objetivo de entender melhor o efeito dos trajetos cotidianos na produção de saúde e subjetividade, a psicóloga Priscila Tamis, em sua dissertação de mestrado, entrevistou profissionais de saúde da cidade de São Paulo sobre suas experiências com o transporte. O resultado não deixa de ser esperado, mas traz observações interessantes sobre o modo de vida que as metrópoles impõem a seus moradores.

A primeira constatação de Priscila está no campo político. As entrevistas de seu trabalho foram realizadas em maio de 2013, antes, portanto, da eclosão das manifestações de junho. Mesmo assim, as respostas obtidas mostram uma consonância com as pautas dos protestos pela melhoria do transporte público. “As conversas ficaram conectadas com o campo político. Todas as demandas das manifestações, como preço do transporte, lotação, conforto, tempo de viagem, falta de informação sobre as empresas que prestam o serviço, apareceram nas entrevistas”, conta Priscila.

Para a pesquisadora, isso mostra que o aparente efeito de massa que o transporte produz sobre as pessoas é só isso, uma aparência. “As pessoas têm noção do custo pessoal que o modo de transporte tem sobre elas, entendem o custo afetivo que isso traz”, diz. Só que nesse modo o corpo é levado ao limite, e sobra pouco espaço para que haja a formação de uma ação de cobrança.

Priscila também destaca o fato de que todos os entrevistados afirmaram que viver passou a ser uma grande tarefa a ser cumprida, em vez de uma experiência com diversas possibilidades. “Isso é uma questão da funcionalidade do corpo. Quem passa horas se locomovendo não tem energia para aproveitar aquilo que a cidade oferece. Esse privilégio é de minorias”, afirma. A maior parte das pessoas sequer consegue dormir o mínimo necessário. “Isso produz uma sensação de fracasso”, diz.

O impacto do cansaço e da falta de tempo nas pessoas é brutal. Sobra pouco espaço para a construção de um pensamento crítico. Mais que isso, o que sobra são pessoas que estão sempre no limite. “Há pouca tolerância com o outro. O que acaba acontecendo é a reprodução da lógica de violência. A humilhação cotidiana acaba sendo descarregada no outro”, afirma.

“A vida, o conceito de saúde como um todo não cabem nesse sistema em que vivemos”, dispara Priscila. Se saúde depende dos nossos modos de vida, do ambiente em que estamos, a constatação é que, de fato, estamos todos doentes.

Abaixo, trechos dos depoimentos colhidos pela pesquisadora.

De entrevistado que faz todos os dias o trajeto Pinheiros-Interlagos:

“E aí o transporte é meio isso, você tem que organizar, tem que ser uma tarefa ir até os lugares… Você tem que planejar o tempo de deslocamento para encontrar as pessoas, assistir um filme, para fazer qualquer coisa, pra chegar a tempo em uma reunião, é um trabalho a mais, é um trabalho de cálculo”.

De entrevistada que faz diversos trajetos entre o Tatuapé, Pinheiros e Jardim Keralux, na Zona Leste, além de realizar atendimentos domiciliares em outros bairros:

“Se estou no horário de pico fico pensando por que estou aqui… essas pessoas… a situação… é o transporte, o direito de todo mundo… e você passa por tanta violência… o povo te empurra… fico me sentindo meio mal. Mas ao mesmo tempo quando estou em um horário tranquilo penso como é legal o metrô, você vai e chega nos lugares e funciona… consigo ir de um lado para o outro de São Paulo em pouco tempo.

Participante que se desloca entre Diadema e Jardim Keralux:

“[…] São mais de duas, quase três horas de tranporte por dia, porque na volta geralmente é mais lento, três horas no total… são três horas perdidas, você fica nessa pilha… tem que ser produtivo […] às vezes você chega na sua casa e não está com saco para produzir… você chega na sua casa e quer descansar… aquilo acaba… aquele espaço do trajeto começa a ser o espaço onde começo a me pressionar um pouco… estudar… ser produtivo.”

Entrevistada que viaja entre Cachoeirinha, Centro e Guaianazes e passa sete horas por dia no transporte:

“Preciso ir ao médico porque acho que estou com varizes. Marquei já três vezes consulta e não fui porque estou chegando direto atrasada. Como vou pedir para sair para ir ao médico? Aí não vou. […] Você fica com a cabeça maluca… durmo muito pouco… quatro horas por dia, às vezes até menos. […] acordei numa irritação, com vontade de chorar, de arrancar o cabelo. Aí quem paga é o namorado… dormiu comigo, eu olhei para a cara dele e fiquei irritada com ele. Ele perguntando: o que você tem já chorando? E tudo chorando sem motivo, muito emotiva… aí tive uma consulta e o ginecologista falou que podia ser TPM. Eu falei: nunca tive esse negócio aí! E eu achava que era por conta das coisas que estavam acontecendo na minha vida.”

Chuvas

Enchentes em São Paulo causam prejuízo anual de mais de R$ 200 milhões para o Brasil

Modelo econômico criado por pesquisadora da FEA-USP mensura danos provocados por alagamentos. Para autora do trabalho, dar dimensão financeira à questão ajuda a sensibilizar administradores públicos
por Thalita Pires, para a RBApublicado 11/02/2014 07h30, última modificação 11/02/2014 09h14
CC / Nathalie Gutierrez / MJ
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Enchente em rua dos Jardins, área nobre da capital paulista: frequente e recorrente

As enchentes recorrentes de São Paulo trazem prejuízos imensos para a cidade. Apesar disso, há pouco esforço para calcular qual é o impacto exato desses eventos para a cidade. Quando aparecem números, eles se referem a perdas materiais diretas, que são de cálculo relativamente fácil. Mas esse é apenas um aspecto da questão. A economista Elaine Teixeira dos Santos decidiu, em sua pesquisa de mestrado, calcular quais eram as perdas econômicas para as cadeias produtivas da cidade e do país, ampliando a concepção de prejuízo com as inundações.

Os números encontrados assustam. A análise dos dados de pontos de alagamentos em São Paulo entre os anos de 2008 e 2012 mostra que o prejuízo médio de produção na cidade é de R$ 107 milhões. No país todo, a perda chega a R$ 226 milhões por ano. Em cinco anos, quase um bilhão de reais foi desperdiçado nas enchentes apenas em perdas produtivas – essencialmente o pagamento de salários sem que haja de fato produção. Esses números não contabilizam as perdas materiais. “Para empresas, as perdas materiais são irrisórias em comparação com as de produção. Se há um prejuízo decorrente da inundação, a empresa toma precauções para que aquilo não ocorra novamente”, afirma.

Para chegar a esse número, Elaine criou um modelo econômico que usa os dados geográficos dos pontos de alagamento. Cruzando esses dados com entrevistas feitas com empresários, ela chegou a uma fórmula possível de ser usada em qualquer cidade que sofra com o mesmo problema. Sua intenção, aliás, era calcular os prejuízos em toda a Grande São Paulo. Entretanto, apenas a capital conta com dados de pontos de alagamentos, essenciais para o cálculo elaborado por ela. “Isso mostra a carência de dados a esse respeito. Nem as próprias prefeituras conhecem seus pontos de alagamento”, diz.

Moradora do Bairro do Limão, Eliane afirmou que sua motivação para estudar o assunto veio da experiência pessoal. “Quando chove, o Limão fica completamente ilhado, não é possível atravessar nenhuma ponte na Marginal Tietê”, afirma. A vontade de traduzir o prejuízo em números, por sua vez, veio da certeza de que administradores públicos lidam melhor com demandas que podem ser mensuradas economicamente. “Quando afeta a economia, o problema ganha mais atenção”, diz. De acordo com a economista, a prefeitura já usa informalmente alguns dados de seu trabalho no trabalho contra enchentes.

Falhas no metrô

Para Alckmin, usuário que passa mal é vândalo. E ninguém contesta

por Thalita Pirespublicado 05/02/2014 18h20, última modificação 07/02/2014 09h58
Eduardo Anizelli/Folhapress
metrô

Conjunto corrupção + risco de vida para a população deveria ser escândalo nacional, mas não recebe devida atenção

Os trens da linha 3-Vermelha do metrô ficaram parados ontem por cerca de cinco horas, das 18h às 23h, aproximadamente. Uma composição apresentou falha na porta e parou na estação Sé e paralisou a circulação no sentido Itaquera. De acordo com informações do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, para que o problema fosse resolvido a eletricidade dos trilhos foi desligada, fazendo com que os trens parados ficassem sem ar-condicionado ou ventilação. Numa sucessão de acontecimentos bastante previsível num dia de calor de 35°C, pessoas passaram mal nas composições e acionaram o botão de emergência de vários trens. A linha 4-Amarela também apresentou problemas no meio da tarde.

Que o sistema metroviário de São Paulo está entrando em colapso parece um fato irrefutável. O número de falhas nas composições vem aumentando nos últimos meses. Em um levantamento rápido, desde agosto do ano passado foram pelo menos sete os dias em que incidentes graves prejudicaram a circulação dos trens e, pior, colocaram a vida de passageiros em perigo. Os dados são inexatos, pois a Companhia do Metropolitano não fornece ao público dados dos incidentes.

Mas o problema não é novo. As falhas acontecem há mais tempo. Durante as eleições municipais de 2012, houve episódios semelhantes ao de ontem. Os incidentes acabaram virando objeto de disputa eleitoral. “Sabotagem”, bradavam o então candidato José Serra e seus aliados. Os problemas continuaram se agravando desde então mas, passadas as eleições, o discurso continua o mesmo.

Hoje o governador Geraldo Alckmin afirmou que desconfia de ação orquestrada para desestabilizar o sistema. “O fato é que houve problema em uma porta, que seria resolvido em menos de dez minutos e que acabou causando esse grande transtorno à população em razão da ação inicial de um grupo de pessoas e depois de vândalos que acabaram atacando estação, o trem e destruindo o patrimônio”, afirmou o governador. O secretário estadual dos Transportes, Jurandir Fernandes, já tinha dito coisa parecida ontem. O depoimento de usuários – ou vândalos – descrevendo o desespero de ficar preso em um vagão lotado sem ventilação por pelo menos 10 minutos não serviu para controlar a sanha acusatória oficial.

A desfaçatez com que esse tipo de afirmação é feita pelos administradores do Estado e a complacência bovina da imprensa que não questiona e sequer critica os responsáveis são difíceis de entender. Jornalismo digno desse nome buscaria as informações sonegadas pelo governo por outras vias. Governantes sérios teriam mais cautela a atribuir a grupos organizados falhas recorrentes no sistema que administram, ainda mais sem a abertura de qualquer investigação nesse sentido.

Há que se ressaltar ainda o fato de que o contrato para a reforma dos trens das linhas 1-Azul e 3-Vermelha foi suspenso pela própria companhia. O Ministério Público Estadual considerou o contrato danoso para o Estado, já que os trens reformados vêm apresentando falhas consecutivas. De  acordo com o Sindicato dos Metroviários, o trem que apresentou problema faz parte da frota reformada pela Alstom/Siemens, envolvidas no escândalo de corrupção que envolve bilhões de reais e cujas investigações avançam a passos de tartaruga.

Com tantas evidências de problemas aparecendo, é de se perguntar por que o assunto não é investigado com rigor. Na Assembleia Legislativa do Estado não há esperanças de que isso aconteça. Não há Comissão Parlamentar de Inquérito que seja aprovada se o objeto de investigação for o governo, uma vez que a base aliada é maioria. No Ministério Público, a perda de prazos fez com que investigações sobre a Alstom fossem paralisadas. Esse tipo de desatenção é inadmissível. O conjunto corrupção + risco de vida para a população deveria ser um escândalo nacional, mas não recebe a atenção que deveria. Que ninguém precise morrer para que essa situação mude. Até porque é de se desconfiar que nem isso adiante para que medidas sérias sejam tomadas.

Haddad

Planejamento de longo prazo ganha peso, mas zeladoria não pode ficar de lado

Na entrevista à RBA, prefeito de São Paulo aponta mudanças na administração e parece ter retomado rumo perdido após manifestações de junho. Questões do dia a dia, no entanto, também são urgentes
por thalitapirespublicado 05/02/2014 12h37
Adriana Spaca/Brazil Photo Press/Folhapress
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O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, concedeu ontem (4) entrevista exclusiva à RBA.  Na primeira parte de conversa, Haddad ressaltou em diversos momentos a importância do planejamento para a cidade. Afirmou que “o debate público está muito contaminado pela mesquinharia, pela falta de visão de longo prazo”.

É reconfortante saber que a autoridade máxima da cidade sabe que seu papel é acertar o rumo da cidade como um todo. Depois de certa titubeação no início do mandato, a impressão é de que Haddad mudou o rumo depois das manifestações de junho de 2013. Manifestações essas que poderiam ter tido outro caminho caso os representantes do Movimento pelo Passe Livre tivessem sido recebidos pela prefeitura, é bom lembrar.

Instalação de faixas e corredores de ônibus, diálogo para a abertura dos clubes da prefeitura para a realização de festas e bailes funk, Bilhete Único Mensal, criação de uma Corregedoria e implementação de esforços para a ocupação dos vazios urbanos centrais (Arco do Futuro) são ações que, em maior ou menor grau, contribuem para uma mudança na direção do desenvolvimento da cidade. Ainda é cedo para avaliar o sucesso dessas ideias, mas politicamente fica clara a orientação da administração.

Essa orientação ficou explícita nas ações levadas a cabo na “cracolândia” pela prefeitura. Em ação pioneira no país, a Operação Braços Abertos ofereceu moradia, trabalho e qualificação para 300 pessoas que voluntariamente aderiram ao programa. Mesmo correndo o risco de fracassar – por melhores que sejam as intenções de qualquer iniciativa, o crack é uma droga altamente viciante e abandonar a dependência não depende apenas da boa vontade do usuário – é preciso comemorar a tentativa de tirar a discussão sobre drogas do âmbito policial e colocá-la na seara das políticas públicas. Se apenas esse for o saldo da operação, ela já terá sido positiva.

Entretanto, aquilo que Haddad chama de “mesquinharia” não pode ser desprezado. É verdade que o papel do prefeito de uma metrópole não é esclarecer pessoalmente casos como um poste caído e reclamar da insistência da mídia com essas questões faz parte do jogo. Mas é, sim, papel da prefeitura cuidar para que o “poste caído” não aconteça novamente. Pois é esse poste que atrasa o estudante para a prova. É o pequeno ponto de alagamento que impede os pais de buscar o filho na escola. É o semáforo quebrado que faz com que as pessoas (inclusive quem anda de ônibus) fiquem ainda mais tempo no trânsito. É a calçada esburacada e desnivelada que causa a fratura no quadril de um idoso. Apenas as ações de longo prazo podem resolver de vez esses problemas. Só que eles já existem hoje e precisam, no mínimo, de paliativos.

A zeladoria é importante e deve coexistir com o planejamento de longo prazo. É papel do prefeito organizar sua administração para que os pequenos problemas urbanos sejam tão bem tratados como os grandes. E se isso não acontecer, a responsabilidade também será dele.

Lazer escasso

Seis mil jovens vão passear no shopping. Pense de novo sobre a proibição ao funk

Multidão de jovens em shopping da zona leste de São Paulo escancara desigualdade reprimida em centros comerciais, em que a exclusão econômica não é a única, e a falta de opções de lazer na periferia
por Thalita Pirespublicado 11/12/2013 12h47, última modificação 13/12/2013 12h03
Alessandro Valle/ABCDigipress/Folhapress
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A adoção do shopping como central de diversão é emblemática sob vários pontos de vista

A cultura dos grandes centros comerciais, onde podemos satisfazer os sonhos de consumo – e depois sonhar mais alto – está tão enraizada nas grandes cidades que ninguém acha estranho termos pelo menos 59 deles na cidade de São Paulo, 48 na Grande São Paulo e 40 na cidade do Rio de Janeiro. No total, havia 766 shoppings no Brasil em 2010.

O grande ícone urbano do nosso tempo é também um importante espaço de lazer. Uma pesquisa recente, realizada por uma revista semanal, mostrou que no Rio de Janeiro já se vai mais ao shopping que à praia. Justo os cariocas, que adoram falar que shopping é praia de paulista, foram também seduzidos pela reunião de praticidade, estacionamento fácil, ar-condicionado e diversas opções de atividades. A Polícia Federal também se rendeu aos encantos dos centros comerciais, nos quais abre frequentemente postos de emissão de passaportes.

Se até quem tem o Pão de Açúcar e o Corcovado como paisagem diária adora um shopping, qual a surpresa em ver milhares de jovens da periferia paulistana promover um mega-encontro em um deles? No último sábado, dia 7, cerca de seis mil pessoas compareceram a um ‘evento’ marcado por meio do Facebook no Shopping Metrô Itaquera, na zona leste da capital. Não parecia haver qualquer objetivo que não “conhecer gente”. O shopping recebe 65 mil visitantes diariamente. Um dado de 2009 mostra que apenas o Mc Donald’s atendia mais de seis mil pessoas por dia em média. Mesmo assim, os seis mil jovens causaram comoção. Há relatos de arrastão e uso de bebidas alcoólicas e de maconha. A polícia foi chamada e os comerciantes fecharam as portas mais cedo. Curiosamente, o próprio shopping nega que tenha havido arrastão, mas há investigações em curso.

As três atividades acima são ilegais e não devem ser toleradas em local algum, é claro. Mas o que importa aqui não são as contravenções ou delitos cometidos. Até porque ninguém foi preso, o que, em princípio, prova que não ocorreu nada mais grave. Os pontos importantes nesse caso são outros.

O primeiro é o escancaramento da desigualdade representada pelos shopping de uma maneira geral. Aquele local tem capacidade para 150 mil pessoas. Mas não pessoas quaisquer. Quem vai ao shopping, por definição, tem algum dinheiro para gastar, se não imediatamente, pelo menos no futuro. A exclusão econômica é a mais óbvia, mas não é a única. Os frequentadores aceitam as normas não escritas de convivência dentro desses locais. Não há algazarra, não há música. Há a ordem. E seis mil jovens pobres violaram essa regra, perturbaram os 150 mil. Por isso viraram notícia.

Caso pior se deu em Vitória, no Espírito Santo. Para fugirem da polícia, que encerrou com violência um baile funk nos arredores, jovens correram para se refugiar dentro do shopping Vitória. Não houve qualquer crime, mas todos foram tratados como se criminosos fossem. Sentados no chão, com as mãos na cabeça, os jovens eram vigiados pela polícia até que tudo fosse averiguado. Apenas não havia nada para averiguar, a não ser a violência policial.

Nessas cidades desiguais, os shoppings podem ser violentos com esses jovens, mas continuam sendo o ideal de lazer existente. Tanto que proliferam no Facebook eventos que organizam essas visitas em massa a diversos shoppings da capital e da Grande São Paulo. O argumento é tão repetitivo que se torna clichê, mas continua sendo verdade. Não há opções de lazer para jovens de periferia. Há poucos parques, os cinemas ficam longe e custam caro, não há onde ouvir música sem que a polícia chegue para acabar com a festa. Pior: a juventude é pouco ouvida para opinar sobre as políticas públicas de lazer.

Aqui, retomo o assunto do último post. A proibição dos bailes funk na rua só faz piorar essa situação. Não importa o quanto o funk seja execrado por quem se sente mais “esclarecido”, ele é uma expressão cultural legítima e mobiliza jovens. Não existe sentido na ideia de reprimi-lo com uma lei. Isso simplesmente não é democrático nem ajuda no convívio social. O conflito de interesses não pode ser resolvido com uma lei que só atende a um dos lados. Discutir uma solução em conjunto dá um trabalho infinitamente maior. A alternativa autoritária é mais fácil, porém inaceitável.