Sem prescrição

TST garante condenação de família que manteve empregada por 20 anos em condições de escravidão

Trabalhadora estava com família desde 1998, sem registro, com pagamentos esporádicos e em más condições de habitação

Agência Brasil
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São Paulo – Por unanimidade, a Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve a condenação de uma família de São Paulo que subordinou uma empregada doméstica a condições análogas à escravidão durante mais de 20 anos. Pela decisão, além indenização por danos morais individuais (R$ 350 mil) e dano moral coletivo (R$ 200 mil), os patrões deverão pagar todos os direitos devidos desde 1998. Os magistrados destacaram a “imprescritibilidade do direito absoluto à não escravização”. Assim, nesse caso não consideraram a prescrição trabalhista, que restringe os pedidos aos cinco anos anteriores ao término do contrato.

A ação, que teve origem em denúncia de 2020 do então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Defensoria Pública da União (DPU). Pelo relato, no endereço da família, “uma trabalhadora idosa fora vítima de violência, maus tratos, tortura psíquica e exploração e estaria trancada no local, ferida”. Após autorização judicial (53ª Vara do Trabalho de São Paulo), o MPT e fiscais encontraram a trabalhadora “assustada e sozinha”.

Num cômodo sem banheiro

Na apuração, se descobriu que a empregada, de 61 anos, vivia no local há três, sem receber salário regularmente. “Os patrões haviam se mudado recentemente, e ela permanecera num cômodo sem banheiro nos fundos da casa, sem as chaves do prédio principal”, relata o TST. De acordo com o Ministério Público, “vizinhos aplaudiam a chegada do grupo (de fiscalização) e fizeram fila na porta para voluntariamente prestarem depoimento, diante da indignação que sentiam com a situação”.

Na sequência, a dona da casa foi presa em flagrante por abandono de incapaz e omissão de socorro. E indiciada pelo crime de reduzir alguém a condição análoga à de escravo (artigo 149 do Código Penal). A residência era em Alto de Pinheiro, bairro de alto padrão na zona oeste paulistana.

Desde 1998, sem registro

Pelos depoimentos, inclusive o da empregada, ela começou a trabalhar ainda para a mãe da atual patroa em 1998, sem registro em carteira. “A partir de 2011, passou a morar com a família e a receber irregularmente, chegando a ficar meses sem salário. Em 2015, a família se mudou para a casa onde ela foi resgatada.” Ainda segundo o relato da trabalhadora, ela ficava sem refeição e o último salário fora de R$ 300.

Além disso, no início da pandemia ela foi proibida de entrar na casa, onde ficava o banheiro. “Uma testemunha contou que, na única vez em que ela saiu de casa para passear com os cães nesse período, foi agredida pelo patrão. Os vizinhos também relataram que, recentemente, ela havia sofrido uma queda e passara a noite gritando, pedindo ajuda aos patrões, que não a socorreram”, destaca ainda o TST.

Sem condição de subsistência

Resgatada, ela não quis ser levada para um abrigo estadual. Tinha medo da covid-19 e não queria abandonar o cachorro da casa, “sua única referência afetiva e emocional”. Um vizinho concordou em abrigá-la e ao animal em sua casa. “Segundo o MPT, ela não tinha nenhuma condição de subsistência, contando apenas com a caridade dos vizinhos.”

Já os patrões alegaram que, entre 1998 e 2011, a trabalhadora prestara serviço como diarista em várias residências. Em 2011, perdeu a casa em consequência de uma enchente e eles teriam oferecido um lugar para ela morar, sem necessidade de realizar serviços. “Segundo eles, o cômodo que a idosa ocupava nos fundos da casa não era uma residência, mas um ‘local temporário’ para ela guardar seus pertences até ter onde morar.”

Medo dos empregadores

Na primeira instância, a Justiça reconheceu que os patrões haviam submetido a trabalhadora a condições análogas ao trabalho escravo, além de abusos psicológicos, desrespeito moral e abandono. Fixou indenização de R$ 250 mil por danos morais e R$ 100 mil por danos morais coletivos, a serem revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), além de reconhecer o vínculo de emprego desde 1998. Mas observação a prescrição trabalhista (limitada aos cinco anos anteriores).

Já na segunda instância, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) aumentou as indenizações para R$ 350 mil e R$ 300 mil, respectivamente. Para os magistrados, a empregada, “pessoa humilde, tinha medo dos empregadores”. Nessa circunstância, “criou-se uma espiral em que ela não conseguia se desvencilhar de sua lamentável situação”.

Assim, um dos questionamentos era sobre a prescrição. A Procuradoria-Geral da República, inclusive, acionou o Supremo Tribunal Federal pedindo que esse crime seja considerado imprescritível. “Embora as esferas penal e trabalhista não se confundam, o Estado não pode compactuar com a impunidade em razão da passagem do tempo, pois isso resultaria num salvo conduto ao explorador”, afirmou a relatora do caso no TST, ministra Liana Chaib. “A situação se agrava ainda mais quando ocorre em ambiente doméstico, em que a trabalhadora é mantida em situação de dependência e exploração, e, não raro, ludibriada pela justificativa falaciosa de que seria ‘como se fosse da família’”, observou.

Na mais recente atualização da chamada “lista suja” do trabalho escravo, aparecem 19 casos de exploração no setor doméstico. No total, foram incluídos 204 nomes.