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Para metalúrgico, Ford ‘foi desleal com os trabalhadores’. E outras empresas podem sair

Diretor do Dieese adverte que acordo de livre comércio com o México poderá levar outras montadoras a deixar o Brasil

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Ao lado do governador baiano, metalúrgicos de Camaçari reúnem-se com embaixadas à procura de novas empresas. Em Taubaté, protestos quase diários

São Paulo – Durante ato virtual promovido por deputados estaduais paulistas, nesta quarta-feira (20), o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté, Cláudio Batista, o Claudião, afirmou que a Ford “foi desleal, desrespeitosa e mentirosa com os trabalhadores”. Ele se referia ao anúncio, sem qualquer negociação, de encerramento das atividades da empresa no Brasil. Isso compreende as fábricas, além da do interior paulista, de Camaçari (BA) e Horizonte (CE).

“É uma catástrofe, principalmente no momento que nós vivemos“, afirmou Claudião, criticando o governo e a falta de politicas específicas para o setor. “Essa questão já vem no reboque daquilo que aconteceu na Mercedes. Fechou porque não precisa mais ter conteúdo nacional para produzir no Brasil. Para ele, é momento de reagir “por um projeto de nação”.

Intervenção do Estado

“Estamos virando um país de serviços, mas os serviços estão ligados à indústria”, afirmou ainda o dirigente, lançando críticas também ao governo estadual. Segundo ele, o governador João Doria (PSDB) não quis recebê-los e uma representante do Executivo paulista disse que o objetivo é discutir recolocação e requalificação. “Não precisamos requalificar, precisamos do emprego, precisamos da intervenção do Estado.”

Exatamente uma ação do Estado brasileiro pode afetar ainda mais o setor e provocar saída de mais empresas, conforme alertou o diretor técnico do Dieese, Fausto Augusto Júnior. Ele considerou o acordo de livre comércio com o México o “centro da discussão”, por prever isenção tarifária e abolir cotas, além de reduzir gradualmente uma cláusula de conteúdo local. Assim, o México passará a ser “porta de entrada de veículos” da Ásia, por exemplo, sem nenhum tipo de nacionalização.

“Desmontagem”

O Brasil, por sua vez, passaria de país produtor para consumidor, no que o diretor do Dieese chama de processo de “desmontagem” do setor. Segundo ele, montadoras de origem japonesa e francesa já discutem o assunto. “Talvez fique só uma parte das alemãs e das japonesas. As outras empresas tendem a sair.”

No caso específico da Ford, Fausto estimou que a perda de empregos pode chegar de 120 mil a 200 mil, considerando a cadeia econômica. Número um pouco superior a estimativa feita há alguns dias pelo Dieese.

A deputada estadual Professora Bebel (PT) reforçou. Segundo ela, não é uma questão que diz respeito somente à Ford ou ao Banco do Brasil, ou aos servidores públicos. “É o problema de um modelo de governo. Em vez de irmos para o caminho da industrialização, estamos indo para o caminho agrário.”

Deputados, sindicalistas e técnicos discutiram a situação da Ford e da própria indústria e economia brasileiras

Para o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (Smabc), Wagner Santana, o Wagnão, o caso Ford “tem que ser visto como uma oportunidade para a gente recolocar o debate sobre a desindustrialização”. Ele observou que o país esboçou uma reação na década passada, chegando a atingir 8,3 milhões de trabalhadores na manufatura (em 2013), ante 5,4 milhões nos anos 1990. Mas em 2020 esse número caiu para 7,2 milhões. A indústria representa hoje 11% do PIB, seu menor nível histórico.

“Existe muito espaço ainda para a produção industrial, a produção de bens”, disse Wagnão. “Não temos política industrial ou setoriais. Precisamos de políticas que infelizmente o Brasil deixou de fazer.” Ele citou o programa Inovar Auto, que estabelecia produção local para poder importar. “Isso acabou trazendo para o brasil 80% das marcas de automóveis. é o resultado fde uma política que protege a produção nacional.”

Protestos em concessionárias

O presidente da Força Sindical, Miguel Torres, lembrou que na época do fechamento da Ford no bairro do Ipiranga, em São Paulo, no final dos anos 1990, já se discutia a questão da “guerra” fiscal. Cidades e regiões se submetem a políticas que beneficiam as empresas, muitas vezes sem contrapartida.

Ele receita que o episódio da Ford possa estimular outras empresas a tentar obter benefícios e consequente redução de direitos. “Isso vai desencadear, com certeza, outras medidas contra os trabalhadores. Miguel lembrou ainda que amanhã (21) serão realizados atos de protesto em concessionárias Ford. 

Procurando interessados

Também nesta quinta, às 6h, os metalúrgicos de Camaçari fazem assembleia diante da fábrica. O sindicato vai avaliar o resultado das reuniões desta semana em Brasília, nas embaixadas da Coreia do Sul, Índia e Japão, com a presença do governador da Bahia, Rui Costa. “As reuniões foram muito importantes para que a gente possa atrair interessados em se instalar e investir em Camaçari, recuperando os milhares de empregos deixados pelo complexo Ford. Temos estrutura e trabalhadores com toda a experiência e o conhecimento da indústria automotiva”, afirmou o presidente da entidade, Júlio Bonfim.

O ato solene de hoje foi idealizado pelos deputados estaduais Teonílio Barba e Emídio de Souza, ambos do PT. Líder da bancada, Barba foi funcionário da Ford de São Bernardo durante 25 anos. A fábrica fechou em 2019. Também participou, entre outros, o deputado federal Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, ex-presidente da CUT, que anunciou uma audiência na Câmara na próxima terça-feira (26).

Exploração e submissão

O desembargador Jorge Luiz Souto Maior, presidente da Associação Americana de Juristas e professor, afirmou que a Ford seguiu um modelo exploratório, com reiterada aceitação da mídia tradicional. Com benesses tributárias, redução de direitos sociais e submissão, o que segundo ele reproduz “uma lógica colonialista” e impede um efetivo projeto de nação.

Souto Maior citou uma série de medidas legais de flexibilização trabalhista vindas desde a década de 1990. Como outros, ele teme que o caso Ford vire um paradigma nesse sentido. “Outras iniciativas virão e podem inclusive ser utilizadas como desculpa ou métodos oportunistas de tentar justificar novas reduções de direitos, nos conduzindo definitivamente ao caos econômico e político”, afirmou.