Lugares de memória

A centenária Corporação Musical Operária da Lapa

Cultura dos trabalhadores: uma das mais antigas organizações de trabalhadores em São Paulo ainda está em atuação

Ulisses Barbosa
Ulisses Barbosa
A Corporação Musical Operária da Lapa, imagem de 2020, mistura de de gerações. Foto de Ulisses Barbosa (2019)

A Corporação Musical Operária da Lapa surgiu no início do processo de industrialização brasileira. A cidade de São Paulo, a partir da Primeira República, tornou-se o centro da modernidade industrial capitalista do país. A Lapa era um dos vários bairros industriais da cidade que emergiram nesse período.

Naquele contexto, um forte associativismo operário prosperou. Para além de um importante movimento reivindicativo por direitos sociais, cujo maior símbolo e expressão foi a greve geral de 1917, organizações culturais e de lazer, como bandas de música, grupos teatrais, times de futebol e grupos de passeio (tais como saídas para piqueniques), eram marcas características do movimento operário daquela época. Algumas dessas instituições permanecem até os dias hoje, como a Corporação Musical Operária da Lapa

A data oficial de fundação da Corporação é 1914, mas sua origem remonta a 1881. Nos primeiros anos do século 20 ela teve a denominação de Banda XV de Novembro, como que a afirmar sua posição pró-republicana.

Mas também já se chamou “Lira da Lapa” e “Banda Sete de Setembro”, além de “Banda dos Ferroviários” – pelo fato de agregar muitos empregados da Sorocabana e da Santos-Jundiaí. A linha coberta pela antiga São Paulo Railway).

A banda era restrita apenas aos músicos homens (o que só mudaria no final dos anos 1970). As primeiras gerações eram compostas apenas por italianos e seus descendentes, muitos deles trabalhadores industriais ou artesãos empregados nas fábricas e oficinas da região.

No mesmo lugar

Em 1930, a Corporação Musical Operária da Lapa construiu sua sede em um terreno doado por Nicola Festa. Ele era imigrante italiano fruticultor e entusiasta das tradições musicais.

A casinha permanece no mesmo lugar. Rua Joaquim Machado esquina com a passagem que conduz à Rua Roma. E por onde anteriormente passava um córrego (chamado então Córrego Mandi), próxima à tradicional estação ferroviária do bairro.

A construção é bem simples. Composta de sala de ensaio, com um curto tablado do lado direito, junto a uma escada que conduz ao mezanino (hoje desativado), além de um pequeno banheiro. As janelas dão para a rua (frente) e para a passagem do antigo córrego (lado).

Com o paulatino declínio de sua composição majoritariamente italiana e o relativo sucesso auferido com as apresentações externas, já a partir da década de 1930, a banda passou a almejar a profissionalização. Na verdade, ela chegou a contar, entre os seus integrantes, com músicos que teriam destaque na cena musical da cidade como foram os casos dos maestros Vicente Santoro e Victor Barbieri, e do clarinetista Nabor Pires Camargo.

Solidarismo operário

Ademais, do ponto de vista de seu formato e do recrutamento de seus membros, a banda musical operária não padecia de acirrada concorrência, a não ser das bandas militares – mas essas últimas tinham exatamente a característica de assegurar o sustento de seus membros, coisa que a Corporação Musical Operária da Lapa não podia fazer, de modo que ela dependia da auto-sustentação dos próprios integrantes para sobreviver.

O solidarismo operário, que vinha da própria condição do trabalho, e a manutenção da banda musical numa forma associativa, com certeza reforçaram-se mutuamente.

Com a expansão da indústria cultural, ela foi perdendo a sua exclusividade na animação dos eventos sociais, e uma certa decadência, percebida pelos próprios músicos, adveio. A banda passou a fazer apresentações em festas privadas, de empresas ou shoppings centers que não necessariamente estavam situados no bairro, o que acabou possibilitando a extensão de sua existência, embora não com as mesmas características de origem.

Maiores de 45

Por outro lado, a própria desindustrialização e gentrificação da Lapa e seu entorno contribuíram para a fragmentação, tanto da audiência, quanto do recrutamento de seus membros, quebrando o elo que havia entre os produtores e os consumidores de suas apresentações festivas. Nenhum dos atuais músicos, por exemplo, mora mais no bairro.

No entanto, a Corporação Musical Operária da Lapa ainda se mantém ativa contando com diretoria, regente e estatuto próprios. Foi registrada formalmente como uma associação privada em 1972, e desde então é mantida graças ao caráter voluntário do trabalho de seus membros.

Os atuais misturam músicos de ambos os sexos, mas muito mais homens do que mulheres (proporção de seis para uma); idosos mais do que jovens (nenhum menor de 45 anos, grande parte acima dos setenta); e oriundos de locais variados da cidade, mesmo de fora dela.

A composição profissional inclui principalmente funcionários públicos e profissionais do setor de serviços. Ensaios abertos ainda podem ser acompanhados por interessados no endereço original, tombado pelo patrimônio histórico municipal em 2009, lembrando tanto aos protagonistas sobreviventes quanto ao seu público de que se trata de uma instituição histórica importante, hoje incorporada à própria vida da cidade.

Corporação Musical Operária da Lapa nos anos 1950. Acervo da família Roseli Abu

Leonardo Mello e Silva é professor do Departamento de Sociologia da USP. Texto originalmente publicado para a série Lugares de Memória dos Trabalhadores, iniciativa do Laboratório de Estudos da História dos Mundos do Trabalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro