Pandemia e abandono

Hospital Sorocabana viu a Lapa crescer. Hoje, a Lapa precisa muito dele

Unidade na zona oeste impulsionou o crescimento do bairro por mais de meio século e está desativada desde 2009. Poderia abrigar 200 leitos para tratar doentes da covid-19

Toni Zagato//CPM Lapa
Toni Zagato//CPM Lapa
Movimento pela reabertura do Sorocabana ganhou força diante da falta de leitos para pacientes com covid-19

São Paulo – Um movimento se formou nas redes sociais em defesa da reabertura do Hospital Sorocabana, na Lapa, em meio à falta de leitos públicos diante do novo coronavírus. O município e o estado de São Paulo estão entre os mais assolados pela covid-19, mesmo diante da subnotificação de casos.

Fechada desde 2010, a unidade localizada numa região onde residem mais de 300 mil pessoas, tem sete pavimentos. Apenas dois funcionam, térreo e mezanino, com uma Assistência Médica Ambulatorial (AMA) e uma Rede Hora Certa. Indicativo de que não há problemas estruturais no prédio, construído na década de 1950.

Para a reabertura seriam necessárias reformas nas instalações, reparos na rede elétrica, hidráulica, sistema de ventilação etc. O valor estimado de R$ 100 milhões, frequentemente citado, não é atestado em documentos. A luta é pela recuperação de toda a estrutura para que o hospital volte a funcionar gerido 100% pelo SUS.

O Sorocabana, na região da Lapa, em São Paulo, está desativado desde 2010, mas imagens feitas por uma equipe de filmagem demonstram: uma reforma daria condição de uso (Toni Zagato/CPM Lapa)

A deputada estadual Beth Sahão (PT) fez uma indicação ao governador João Doria pela reabertura do Hospital Sorocabana. “Pedimos que o governo reative o funcionamento do hospital para atendimento da covid-19 com 150 a 200 leitos. Esperamos que sejamos atendidos, não nós, mas a população da região da Lapa.” Essas indicações oficiais dos parlamentares ao governo são publicadas no Diário Oficial do Estado, mas não passam por voto. O governador aceita se quiser. Até agora, não aceitou.

Procurada pela reportagem da RBA, a Secretaria de Saúde do governo do estado informou que não se manifestaria sobre o assunto, já que o prédio foi cedido ao município.

Jogo de empurra

“A prefeitura, por meio da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), esclarece que o terreno onde se localiza o Hospital Sorocabana pertence ao Governo do Estado. Uma permuta do terreno com a área municipal onde fica o Instituto Dante Pazzanese chegou a ser cogitada, mas por questões jurídicas a transação foi considerada inviável”, informou a SMS.

Esse jogo de empurra é antigo, relata o sociólogo Adaucto José Durigan, subprefeito da Lapa entre 2001 e 2004, quando o hospital estava em pleno funcionamento. “Falta vontade política. Em todas as gestões da prefeitura e do governo estadual, a reabertura do Sorocabana ficou sempre em segundo plano. Estima-se em R$ 100 milhões o custo para as reformas do prédio. Mas nenhuma administração municipal aceitou investir, já que depois de a obra pronta o prédio voltaria a ser do estado”, afirma o ex-subprefeito, um dos ativistas pela reabertura do Sorocabana.

A concessão começou em janeiro de 2012, para um período de 20 anos de uso em favor do município.

O ex-deputado estadual Luiz Cláudio Marcolino (PT), hoje vice-presidente da CUT-SP, defendeu durante seu mandato (2011-2015) a reabertura do Sorocabana, inclusive contra leilões de venda do hospital. “Diante da falta de leitos no SUS, da falta de leitos na zona oeste, que tem número grande de idosos, o Hospital Sorocabana seria essencial”, avalia.

“Fizemos levantamento. Poderia estar a pleno vapor neste momento. Bastaria diálogo entre as esferas estadual, municipal e federal”, afirma Marcolino. Ele lembra dos avanços alcançados dessa forma entre as gestões de Fernando Haddad na prefeitura Geraldo Alckmin no governo do estado e Alexandre Padilha no Ministério da Saúde, que resultaram nas instalações em funcionamento.



Mobilização pela reabertura do Hospital Sorocabana, em 2011, reuniu moradores da região, antigos pacientes e ex-funcionários

Vontade política

O arquiteto e urbanista Toni Zagato integra o Comitê de Defesa do Hospital do Sorocabana, criado há dois anos e do qual fazem parte os movimentos Pompeia Sem Medo e Lapa Sem Medo. Ele observa que a luta cresceu nas últimas semanas com menagens de centenas de apoiadores da cena, como o líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e do PSol, Guilherme Boulos, e das artes, como a cantora Luedji Luna. “Mandamos ofícios para o Ministério Público e para o governador João Doria, o prefeito Bruno Covas e seus secretários de Saúde”, relata.

Ele conta que a prefeitura já solicitou ao estado a transferência em definitivo do imóvel do Sorocabana. “A pressão é para que se conclua o processo de doação e a partir disso a adaptação emergencial, via reformas.”

Para Zagato, mestre em Políticas Públicas e coordenador do Conselho Participativo da Lapa, o momento é propício para integrar a luta do Sorocabana à defesa do SUS. “Num momento de pandemia, em que milhões de pessoas vão ser contagiadas e estamos tentando preservar vidas, é impensável o Sorocabana estar fora dos planos de contingência.”

Estrutura do prédio do Sorocabana, na Lapa (Toni Zagato/CPM Lapa)

Como Durigan e Marcolino, Zagato considera a questão de vontade política. “Esse hospital sempre foi objeto de disputa dos mercado imobiliário e de saúde privada”, ressalta, lembrando que o governador Doria, quando prefeito (2017-2018), quis conceder o hospital à rede privada. “Em torno desse silêncio em relação ao Sorocabana em meio à pandemia também pode haver motivos ocultos.”

Em resposta ao ofício apresentado pelos 75 conselheiros participativos da região, a prefeitura reconheceu que a Lapa não possui leito hospitalar destinado ao SUS, e que a localização do Sorocabana o torna referência. Reconhece a demanda “legítima”, mas não considera viável para o enfrentamento da covid-19.

Hospitais de campanha

Enquanto o Sorocabana permanece fechado ao atendimento dos cidadãos, o governo do estado consumiu cerca de R$ 12 milhões na construção do hospital de campanha localizado no Ibirapuera, na cidade de São Paulo. A manutenção da unidade temporária deve custar em torno de R$ 10 milhões mês aos cofres públicos. Os construídos pela prefeitura de São Paulo, no Pacaembu e no Anhembi, consumiram R$ 35 milhões na construção e R$ 15 milhões ao mês para a manutenção deles.

Para Zagato, essas instalações provisórias são necessárias, mas revelam a priorização de obras com gastos que não se tornarão legado para a saúde. “A obra emergencial do hospital seria um legado que ficaria para depois da pandemia para o atendimento permanente de saúde”, critica.

Além disso, destaca, as instalações provisórias serão administradas por organizações sociais. “Quem vai ganhar muito dinheiro público nesses contratos emergenciais? Organizações como o Albert Einstein, cujo diretor por 30 anos foi o José Germann Ferreira, o atual secretario de Saúde do estado. Olha como as coisas têm coincidências”, ironiza, lembrando ainda que o Pacaembu, onde funciona um dos hospitais de campanha, foi privatizado e pode gerar custo aos cofres públicos. “Há risco de o orçamento público ser utilizado de forma ineficaz, ineficiente e inefetiva. Isso precisaria estar centralmente gerido e não sendo terceirizado.”

Má administração

A Associação Beneficente dos Hospitais Sorocabanas (ABHS) administrou a unidade de 1955 a 2010, quando fechou devido a irregularidades no uso do dinheiro público transferido pelo SUS.

Acesso frontal ao hospital Sorocabana, referência para a região da Lapa: quando foi fechado por má administração contava com 217 leitos hospitalares e fazia cerca de 500 partos ao mês

Funcionários ficaram sem receber salários e milhares de cidadãos perderam a assistência pública e de qualidade. Em 2009, o Sorobacana contava com 217 leitos hospitalares e fazia cerca de 500 partos ao mês. Hospital de referencia na zona oeste da capital paulista, atendia, além dos moradores da Lapa, bairros vizinhos como Vila Romana, Pompeia, Perdizes, Vila Anastácio, São Domingos, Jaguara, Pirituba e outros. Cidades próximas também recorriam ao atendimento já que a região tem excelente acessibilidade com dezenas linhas de ônibus e duas estações de trem da CPTM.

“O fechamento do Sorocabana não apenas piorou o atendimento à saúde na região, mas causou também o desemprego de diversos trabalhadores do setor e de comerciantes da vizinhança, uma vez que o hospital fomentava toda uma cadeia de atividades complementares a seus serviços”, relata o movimento Pompeia Sem Medo, um dos empenhados na luta pela reabertura da unidade.


Hospital Sorocabana fez o bairro da Lapa crescer

Foto: Toni Zagato/CPM Lapa

O Hospital Central Sorocabana foi fundado em janeiro de 1955 por uma associação de ferroviários da companhia Estrada de Ferro Sorocabana (EFS). Um acordo negociado com o governador Adhemar de Barros (1947-1951) cedeu o terreno, na esquina das ruas Faustolo e Rua Catão. Caso deixasse de servir à saúde, o imóvel teria de ser devolvido ao estado.

Os funcionários da ferrovia foram os principais usuários durante anos. “O estabelecimento das linhas da EFS e da São Paulo Railway (nomeada Estrada de Ferro Santos-Jundiaí em 1938), na região da Lapa, é um fato de grande importância. A partir do transporte e da comunicação, diversos investimentos, sobretudo vinculados à indústria e ao desenvolvimento imobiliário, passaram a ser realizados”, relata o movimento Pompeia Sem Medo.

Com empregos e infraestrutura, a população da Lapa aumentou. “Os operários em pouco tempo se tornaram expressiva classe social (…) Com frequência, mobilizavam-se por melhorias nas condições de vida e de trabalho, pressionando governantes e proprietários de fábricas, como nas históricas greves do início do século 20. Essa mobilização social fomentou a criação de organizações civis, sindicatos, associações de trabalhadores ou de moradores. A fundação do Hospital Central Sorocabana é resultado desse processo.”

Em setembro de 2011, um grande ato mobilizou milhares de pessoas pela reabertura. Um “abraço” reuniu antigos pacientes, mães que deram à luz no Sorocabana, ex-ferroviários. Um vídeo do Cine Galpão registrou a cena. “Marcam um exame para fazer aí fora e leva até meses. Aqui a gente tinha tudo isso”, relatou um ex-ferroviário. “Meus três filhos nasceram aqui. O mais velho em 1º de março de 1959.”

Um ex-funcionário, motorista de ambulância, lamentava: “Meu neto nasceu aqui. E hoje ninguém cuida. O material que tem aqui dentro está sumindo”.

Fotos: Toni Zagato/CPM Lapa


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