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A greve de 1917 conta histórias que continuam atuais

Livro escrito por jornalista narra detalhes da paralisação que tomou a cidade de São Paulo há 100 anos. E fala das ameaças de retrocesso que desafiam o movimento sindical. Lançamento será nesta sexta

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Mobilização: mulheres ganhavam pouco mais da metade do que recebiam os homens e crianças

São Paulo – “O caixão foi carregado pelas mãos dos amigos, antigos ou recém-chegados, outra evidência de que ali se tratava de um enorme grupo de famélicos, pessoas em desespero. Naquele início de século, os cadáveres eram distinguidos pelo número de cavalos que puxavam os carros fúnebres; e, quanto mais enfeitados os cavalos, mais nobre o morto.”

A descrição é do enterro do jovem sapateiro e militante anarquista José Martinez, 21 anos, uma das vítimas da greve que tomou conta de São Paulo de 9 a 16 de julho de 1917, uma referência histórica do movimento operário brasileiro, em tempos de direitos ameaçados e “reformas” da legislação. A estimativa é de que 10 mil pessoas acompanharam o féretro pelas ruas do centro paulistano até o Cemitério do Araçá, saindo da Rua Caetano Pinto, no Brás, um dos bairros mais antigos da cidade e onde se localiza atualmente a sede da CUT.

Com lançamento marcado para esta sexta-feira (15), o livro 1917-2017. 100 Anos de Greve Geral – Passado ou Futuro?, do jornalista paulistano Isaías Dalle, propõe discutir o momento histórico, descrevendo o início da organização trabalhista e fazendo a ligação com a atual conjuntura, que já motivou uma greve geral em 28 de abril. O lançamento, com debate, será a partir das 18h30, justamente na Rua Caetano Pinto. A iniciativa é da CUT e da Fundação Perseu Abramo (FPA). 

Ironia do destino ou a história repetida como farsa, justamente no ano do centenário da mobilização operária que reivindicava, entre outros direitos, o de sindicalização, jornada de oito horas semanais e proibição do trabalho infantil no período noturno, um governo golpista consegue aprovar uma legislação trabalhista que representa um retrocesso de, pelo menos, 100 anos”, afirmam os organizadores. “Essa é uma das propostas do livro, fazer a transição entre aquele período heroico inaugural e o momento que vivemos atualmente.”

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Livro resgata origens da organização operária e aponta ameaça atual a direitos conquistados ao longo da história

O operário morreu após ser atingido por um tiro dado pela Força Pública, a polícia da época. “Martinez tombara próximo ao local de trabalho dele, uma das inóspitas e insalubres masmorras onde se produziam tecidos e roupas, fábricas que cobriam a paisagem dos bairros operários da cidade, como o Brás, cujas calçadas testemunharam seu corpo jazer até que outros grevistas recolhessem o jovem dali. (…) O enterro de Martinez mexeu de tal forma com a cidade que os dias que se seguiram fizeram a capital paulista parar de maneira como nunca mais se teve registro posterior. O comércio não abriu as portas, os bondes não circularam, as pessoas ficaram em suas casas.”

Outras pessoas morreram naqueles dias. A menina Eduarda Blinda, de 12 anos, foi atingida por um disparo (hoje se diria “bala perdida”) na porta de sua casa, na Barra Funda, outro bairro central e operário. E o grevista Nicola Salerno morreu “nas mãos da polícia” ao tentar deter um bonde na Rua Augusta.

O número real de mortes certamente foi maior. Isaías faz referência a uma história, “até hoje sem apuração ou reparação oficial”, de que centenas de grevistas e manifestantes teriam sido enterrados à noite ou sem registro legal. Também teria havido uma razoável quantidade de policiais mortos. O livro traz várias imagens do movimento e da situação dos trabalhadores um século atrás, além de reproduções de periódicos da época.

Segundo afirma na apresentação o presidente da CUT, Vagner Freitas, a leitura “nos faz refletir sobre os fatos, o momento político e as lutas dos companheiros e companheiras, em sua maioria, europeus que imigraram para o Brasil e, há cem anos, iniciaram as maiores lutas do trabalho fabril contra o capital explorador em nosso país”. E também “sobre os avanços que conquistamos nos anos seguintes, enfrentando repressão policial idêntica ou até maior porque mais preparada para ferir, para agredir, para matar”.

Para os autores do prefácio, o diretor da FPA e ex-presidente da CUT Artur Henrique da Silva Santos e o secretário de Cultura da central, José Celestino Lourenço, “a greve geral de 1917 era o despertar de um movimento operário que daquele momento em diante declarava guerra sem tréguas ao luxo ostensivo e insensato dos parasitas, como denunciava uma das edições do jornal A Plebe, um dos mais influentes entre o operariado naquele contexto”.

Segundo eles, o autor do livro, “sem a pretensão de esgotar os estudos e os debates sobre este importante acontecimento, nos apresenta uma abordagem inovadora ao procurar demonstrar que as lutas travadas em 1917, duramente reprimidas e marcadas por traições por parte dos patrões, ao negarem o cumprimento dos acordos firmados, não encerraram as contradições de classe inerentes ao processo de consolidação do capitalismo, em particular no Brasil”.

Nova escravidão

De acordo com o autor, o ponto de partida da greve foram as péssimas condições de vida dos operários, que, vindos da Europa, encontravam “uma nova espécie de escravidão” no Brasil, com jornadas que frequentemente superavam as 12 horas diárias, chegando a 18 em algumas situações, além de baixos salários.

“Diante de impossibilidade de viver dignamente, a hipótese – defendida pelos patrões, de empregar meninas, meninos e mães de família no cotidiano das fábricas parecia a única saída permitida pelo mundo e pelos céus. Aquele quadro sombrio guarda semelhanças com situações que se podem encontrar no Brasil de 100 anos depois”, diz Isaías, 51 anos, há 15 atuando na imprensa sindical. “Mães e mulheres grávidas trabalhavam em ambientes insalubres ao longo de horas. Crianças – muitas com oito a dez anos de idade – eram usadas nas fábricas.” Segundo relatos da época, alguns chefes, chamados de “contramestres”, chegavam a usar pistolas para intimidar os operários.

O autor anota que, de acordo com o professor ítalo-brasileiro Luigi Biondi, a maioria dos operários, naquela época, era de italianos ou descendentes. “Evidência disso estava na composição dos quadros do Cotonifício Crespi, no bairro da Mooca, onde eclodiu o primeiro núcleo grevista daquele ano. De 1305 trabalhadores, 947 eram italianos”, escreve.

Em 14 de julho, uma proposta de acordo inclui o compromisso de libertar todos os presos, reconhecer o direito de associação e reunião, combater a alta de preços e a adulteração de gêneros alimentícios e estudar meio de impedir o trabalho noturno para mulheres e menores de 18 anos. O Comitê de Defesa Proletária, uma espécie de “comando de greve”, recomenda a aceitação, por temer mais mortes. Um grande comício é realizado no Largo da Concórdia, diante do Teatro Colombo, com estimadas 10 mil pessoas. Outros dois ocorreram na cidade, nos bairros do Ipiranga e da Lapa, aprovando a proposta. 

A segunda parte do livro começa com a narrativa de ato no Cemitério de Araçá, um século depois do enterro de Martinez, cujo túmulo foi localizado por Isaías durante suas pesquisas. Em 10 de julho, foi inaugurado um memorial em homenagem à memória dele e de todos os operários que participaram do movimento. Apenas um dia depois, o Senado aprovava o projeto que se tornaria a Lei 13.467, “que a mídia comercial eufemisticamente apelidou de ‘reforma trabalhista'”. Começava um novo capítulo da história do movimento sindical, da luta operária e da resistência.

“Eis que, cem anos depois, sem que a maioria da sociedade brasileira tivesse ainda atingido o direito de estar incluída na cobertura das leis trabalhistas surgidas na década de 1940, a nova legislação aprovada traz recuo, fragilizando a proteção dos trabalhadores e trabalhadoras”, constata o autor.

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