Na Câmara de São Paulo, especialistas condenam internação compulsória para higienização

A internação só poderia ocorrer como parte do tratamento, segundo os debatedores. “Olhar especial” deve ser adotado pela sociedade e poderes públicos

São Paulo – A internação compulsória de usuários de crack foi debatida por representantes do Judiciário, do Legislativo e de ONGs nesta sexta-feira (9) na Câmara Municipal da capital paulista. A Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Segurança Pública da Casa promoveu uma conferência para discutir o alastramento do uso da droga. Os participantes do debate defenderam que a internação involuntária até pode ser aplicada, desde que tenha como objetivo proteger o dependente. A preocupação é com a possibilidade de a medida se tornar uma forma de “limpeza social” de determinadas áreas da cidade com finalidades econômicos.

O evento foi realizado dois dias depois de o governo federal ter lançado um plano contra a “epidemia” da droga no país, conforme termos do próprio ministro da Saúde, Alexandre Padilha. A possibilidade de levar pessoas viciadas no crack ao tratamento mesmo contra a vontade deles foi incluída no programa, como “último recurso”, mas mesmo assim como parte “fundamental” da plataforma.

“Faz-se justo que as pessoas que atentem contra a própria vida passem por um período de internação, desde que seja da avaliação da equipe médica”, resumiu Mauro Aranha, presidente do Conselho Estadual de Política sobre Drogas (Coned). O papel do Estado, segundo ele, é de acompanhar de perto a realidade individual dos viciados das chamadas “cracolândias”, fenômeno que ocorre em um número crescente de cidades grandes e médias, com concentração de usuários em determinadas regiões.

A internação contra a vontade do dependente é considerada menos eficaz por especialistas por haver adesão menor ao tratamento e por não existir garantias de que a pessoa permanecerá distante da droga após a fase de recuperação.

Sem leitos

O fator agravante, segundo Aranha, é a falta de leitos em hospitais gerais de São Paulo – atualmente, são cerca de 500, segundo o médico. Sem os leitos necessários, existe a possibilidade de alocação em leitos não manicomiais, quer dizer, sem equipamentos necessários para o tipo de tratamento demandado. Em casos menos avançados de degradação física, os pacientes podem acabar sendo levados a comunidades terapêuticas qualificadas, o que reduziria o impacto da insuficiência de leitos.

O plano nacional, que inclui ações dos ministérios da Saúde, Educação, e da Justiça, tem metas definidas por cidade. No caso do atendimento em São Paulo, seriam criadas 173 novas unidades de acolhimento com disponibilidade de 24 horas por dia. A preocupação é com o que acontecerá enquanto a estrutura estiver sendo erguida.

O vereador Jamil Murad (PCdoB), presidente da comissão e autor da solicitação da sessão, ressaltou a necessidade de união de esforços do poder público em diferentes instâncias, além da participação da sociedade. “Se não houver a participação de outros agentes, como da sociedade e união de poderes, nada vai evoluir, como não evoluiu até agora”, disse.

Médico de formação, Murad também alertou para a dificuldade de se encontrar profissionais qualificados para o tratamento. Isso acontece por causa de um “antigo preconceito” dos médicos em formação – relativamente poucos dispõem-se a se especializar em toxicologia, área voltada ao tratamento de dependentes químicos. O cenário demanda ainda algum “amadurecimento” da comunidade médica.

Desmando

Regiões como o bairro da Luz, na área central da capital paulista, convivem com uma situação complicada. De um lado, os moradores e comerciantes veem parte das ruas ocupadas por grande concentração de pessoas dependentes de crack. Por outro, uma movimentação da prefeitura da cidade nos últimos anos acabou por promover um movimento de especulação imobiliária.

Segundo o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Menor, o cenário na região, taxada como Cracolândia, traz uma preocupação a mais para a proposta de internação compulsória. A proximidade de interesses entre a prefeitura – que aposta politicamente no Projeto Nova Luz, para “requalificar” a região com desapropriações e concessão de autonomia a consórcios privados – e de empresas do setor imobiliário pode acabar favorecendo abusos.

Em vez de se promover internações involuntárias apenas por opção de tratamento de saúde ou risco à vida da pessoa dependente, a prática poderia ser motivada apenas por uma espécie de “limpeza social”, com finalidade econômica. “Por isso não existe cracolândia em Higienópolis, porque sujaria a imagem de região cara. Não queriam nem metrô, imagine viciados”, disparou, em alusão à resistência de moradores do bairro à instalação de uma estação de trens metropolitanos na região. “A internação compulsória é uma desculpa para o desmando.”

Samuel Karasin, juiz da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, destaca que não existe “só uma cracolândia”. “Onde tem ônibus e possibilidade de circulação, existe um ponto de fumo”, afirmou. A rua Helvétia, na Luz, é considerado como “ponto de encontro” para o fumo do crack, mas ele acredita que a situação está disseminado pela cidade.

“É preciso uma solução profunda, e menos superficial, cobrando dos atores sociais seu papel. Não adianta colocar band-aid”, ironizou. A proposta do juiz é que o judiciário se desloque para estes locais, e aprofunde o conhecimento da realidade.