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Para além da atenção básica, Mais Médicos amplia discussão sobre formação profissional

Programa do governo federal acendeu debate sobre direito e atenção à saúde, racismo, saúde dos índios, da mulher, do homem e de minorias

Povoado baiano de Vaca Morta, em Boquira, faz recepção para médica cubana

São Paulo – Tirar o foco do valor monetário da medicina é uma necessidade para a implementação do Sistema Único de Saúde conforme prevê a Constituição Federal. Ainda que seja direito universal, até setembro passado, aproximadamente 46 milhões de brasileiros não tinham acesso a uma equipe de saúde da família nem a um médico, com a frequência adequada, em Unidades de Básicas de Saúde próximos de suas casas. Com o lançamento do Programa Mais Médicos, em julho de 2013, a carência de profissionais foi minimizada e cerca de 13 mil equipes de saúde da família foram ampliadas.

O Mais Médicos garantiu ao Brasil a possibilidade de cumprir a meta de atingir pelo menos 75% da população com equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) até o final da década. De 2010 a 2013, o número de equipes crescia lentamente – cerca de mil por ano. E, mesmo assim, quase metade das equipes criadas não conseguia manter um médico com carga horária integral, de 40 horas semanais.

Nesse ritmo de crescimento seriam necessários pelo menos 15 anos para que o país alcançasse a meta. Essa foi uma das razões apontadas pelo diretor do Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério da Saúde, Hêider Pinto, para a criação do programa, que, no quarto ciclo, atinge neste mês perto de 13 mil profissionais contratados.

Além da dificuldade na contratação dos médicos, a alta rotatividade desses profissionais também dificultava a continuidade das ações das equipes. “Constatamos que metade dos médicos ficava na equipe por até um ano, enquanto os profissionais do Mais Médicos assumem o compromisso de permanecer com a equipe por três anos”, acrescentou o diretor, em entrevista à Agência Brasil.

José Ivo Pedrosa, coordenador do grupo de tutores dos médicos intercambistas na Universidade Federal do Piauí (UFPI), explica que o Brasil precisa “formar gente para trabalhar com gente” e que o Mais Médicos já esboça um legado importante. Para Pedrosa, mais que “apenas” mandar médicos para onde outros profissionais não queriam ir, o programa abre imensa possibilidade para discutir a formação dos médicos, debate até então bloqueado pela força política das corporações.

Saúde e comunidade

Miguel Águila Toledo chegou ao Brasil com o primeiro grupo de médicos cubanos, em setembro de 2013, para atuar em Serra Grande, município do sertão paraibano, localizado a 465 quilômetros da capital João Pessoa, com quase 3 mil habitantes.

A primeira providência de Toledo foi fazer um diagnóstico da população local a partir de informações de saúde pública, como a pirâmide de faixa etária, números de hipertensos, diabéticos e gestantes, e avaliação nutricional de crianças, entre outros indicadores de doenças transmissíveis e não transmissíveis. “Contei com as ferramentas de análise de situação de saúde, que são muito boas aqui no Brasil”, avaliou.

A partir do diagnóstico da população, o médico elaborou com a equipe a rotina diária de ações, que hoje incluem um dia dedicado a visitas a áreas rurais e grupos de educação em saúde para mulheres (sobre prevenção de câncer de mama e de colo de útero) e de doentes crônicos, como hipertensos e diabéticos.

A abordagem de Toledo foi muito semelhante à do cearense formado em Cuba Thiago Ponciano Lima, que foi destacado para a Unidade Básica de Saúde Marinheiros, no município de Itapipoca (CE). A partir do levantamento do perfil epidemiológico da população, ele organizou a agenda programática do município, que hoje conta com períodos reservados para atendimento ambulatorial de crianças, de gestantes, de adolescentes e de doentes crônicos.

“A unidade onde fui trabalhar não tinha médicos havia mais de seis meses, mas tenho colegas que foram para locais onde não tinha médico havia dez anos”, afirmou Lima, que se preparou para uma demanda excessiva logo na sua chegada. “Até o ponto de organizar o atendimento, precisamos eleger metas prioritárias. A primeira foi colocar em dia o atendimento a gestantes”, disse.

Hoje, o médico cubano reserva um período semanal para visitas domiciliares aos pacientes acamados ou com dificuldade de locomoção, e criou grupos de atendimento, como um para adolescentes. “O município tem uma incidência muito grande de gravidez na adolescência. Por isso, nos dedicamos a orientar as meninas, não só a respeito de contracepção, mas também sobre doenças sexualmente transmissíveis, no ambulatório que criamos.”

As discussões ocorridas durante a 4ª Mostra Nacional de Experiências em Atenção Básica e Saúde da Família, realizada neste mês em Brasília, reforçaram a carência de cursos que vocacionem profissionais para a atenção básica como um grande obstáculo para o SUS.

Saber ouvir

O professor José Ivo Pedrosa afirmou que, após o Mais Médicos, existe um movimento que pretende qualificar a formação de profissionais para atender às necessidades da atenção básica, do Sistema Único de Saúde e dos territórios. “Foi preciso ampliar os círculos de discussão desse tema para além da universidade. Vivemos sob a égide de que a saúde é um direito de todos, mas, na prática, a saúde é uma grande mercadoria.” Ainda segundo Pedrosa, o programa contrapôs dois modelos de medicina: um fundado no direito e na solidariedade; e outro baseado na perspectiva de que a profissão é a escalada para se ganhar muito dinheiro, ficar poderoso e rico.

Segundo o tutor, a universidade no Brasil prepara o médico para receber um paciente de elite, que sabe dizer exatamente o que sente e que só vai corrigir o problema e dar o diagnóstico correto. “Na saúde é fundamental se permitir observar o outro. A fala é pela voz, mas existem outras linguagens: o semblante, a maneira como a pessoa chega, a maneira como ela se porta diante do outro e, principalmente, o toque. E na profissão médica há um grande problema, a desqualificação da fala do outro. Só nós estamos autorizados a falar. O sujeito que sofre com a dor não pode dizer nada. Por isso, precisamos saber ouvir para não fazer a saúde e a doença dependerem de toda a parafernália eletrônica que hoje dispomos”, cravou Pedrosa.

Potencial transformador

Pesquisadores do SUS veem no programa federal um potencial para começar a mudar esse estado de coisas. Principalmente, porque recolocou as discussões na agenda e fez o Ministério da Educação (MEC) criar uma universidade para formar professores que saibam ensinar o médico a se permitir observar o que existe ao seu redor, ouvir o outro e a se permitir o afeto. Hoje, o padrão diz que a melhor prática e o melhor profissional é aquele que não se comove com a dor do outro. “E o Mais Médicos contribui, porque mostra que esse profissional não serve para atender a uma população que por ser  tão expropriada e excluída não sabe nem expressar o que sente”, defendeu Pedrosa.

Hêider Pinto, diretor do DAB, também acredita no potencial transformador do programa. Para ele, uma das contribuições será a mudança na cultura dos profissionais no país. “A surpresa e encanto que esses profissionais têm produzido em gestores e, principalmente, nos usuários é um fator marcante e a se comemorar”, defendeu, referindo-se não apenas aos médicos estrangeiros, mas também aos 34 mil médicos brasileiros de Família e Comunidade que já atuam nas equipes de Saúde da Família “por opção, decisão  e vocação”.

Pedrosa lembrou que temos um histórico de realizar políticas de saúde apenas quando a necessidade abre a porta, para atender a crises pontuais, como morte infantil ou materna. “Políticas como o Mais Médicos não são dirigidas pela necessidade, mas se originam do desejo de vivermos como cidadãos. Hoje temos que nos movimentar não apenas pelo desejo de resolver problemas, mas pelo desejo de sermos felizes.”