Desconhecidos, mas sempre presentes

Tutela militar compromete a democracia brasileira e ainda é desafio para a esquerda

Para Genoino, durante os trabalhos da Comissão da Verdade teria sido possível conseguir um reconhecimento de crimes do Estado e pedido de desculpas

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Para Domingos e Genoino, tema ainda é pouco estudado e mostra fragilidade do país

São Paulo – “A democracia no Brasil dependerá do conhecimento que tenhamos acerca dos militares”, diz o professor Manuel Domingos Neto, da Universidade Federal Fluminense (UFF), considerando curioso que o tema seja tão pouco estudado no Brasil. “Quantos especialistas em defesa temos no parlamento? Não temos um curso de história militar na universidade”, constata o pesquisador, que participou ontem (11) à noite do lançamento do Dossiê Os Militares e a Política, que reuniu ainda o ex-chanceler Celso Amorim e o assessor especial do Ministério da Defesa José Genoino, para quem “falta um pensamento político, democrático, de esquerda, na maneira de tratar essa questão”.

Para o também ex-deputado, o Brasil mantém uma espécie de “tutelar militar constitucionalizada”, depois que o setor progressista perdeu “batalhas” na Constituinte de 1987-88, quando o item “defesa da soberania” do Artigo 142 da Constituição, sobre os militares, deu lugar à defesa da “lei e da ordem”. Durante o debate, Genoino e outros observaram que, da maneira que foi concebida, a política de defesa faz com que as Forças Armadas se voltem muito mais para dentro do país – a chamada Garantia da Lei e da Ordem (GLO), sempre evocada pelos governos, ainda mais no período recente. “O militar se preparou essencialmente para o combate interno, não para o externo”, afirma Domingos, que contou ter sido recebido com estranhamento, inclusive por cientistas sociais, o seu interesse sobre o tema, que levou à criação da Associação Brasileira de Estudos Sociais – uma colega chegou a afirmar que ele estava “virando casaca”.

Realizado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o evento marcou o lançamento da revista Perseu, do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, cuja edição número 18 traz 300 páginas com vários artigos sobre a presença militar na vida brasileira. A publicação traz cinco longos artigos sobre o tema, além de uma entrevista com Celso Amorim – concedida justamente no dia do discurso de Jair Bolsonaro nas Nações Unidas, em 24 de setembro – e documentos sobre política e estratégia de defesa nacional. O conteúdo em breve deverá estar disponível no site da fundação.

Defesa não é violência

Genoino lamentou que, não só na Constituinte, mas nos governos petistas, não tenha sido possível avançar em questões como formação das Forças Armadas e a segurança pública. “Começamos tarde. O que é defesa? Não é violência, a farda. É a autonomia de decidir. A hegemonia neoliberal, em termos de soberania do Estado, coloca as Forças Armadas numa tendência de discutir os assuntos internos”, observa.

Além disso, ele aponta uma “concepção autoritária” no meio militar que se consolidou ao longo do tempo.  “Temos de fazer um debate de radicalização da democracia, de nossa institucionalidade”, afirma o ex-deputado petista, que foi preso pelos militares no início da Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970. “O Estado brasileiro tem uma espinha dorsal autoritária. Isso juntou com o papel das Forças Armadas.” Ele também critica a atuação das tropas brasileiras durante a ocupação no Haiti, cuja experiência, segundo ele, reforçou o chamado princípio da lei e da ordem, de viés repressivo. “A gente deveria ter jogado pesado em políticas públicas naquele país.”

Mesmo assim, Genoino acredita que teria sido possível avançar nessa questão, inclusive durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que sempre esbarrou na resistência militar para aprofundar as investigações. “Poderíamos ter produzido uma situação que levasse à admissão de crimes do Estado e pedido de desculpas.”

Mas não se trata do único setor de certa forma “intocável” no país. O ex-deputado cita três, usando o termo “toga, farda e microfone”, para se referir também ao Judiciário e à mídia.

Inimigo potencial

Autor do artigo Sobre o Patriotismo Castrense, publicado na revista, o professor Domingos observa que o militar tem “leitura própria da dinâmica social”. Foi cauteloso ao falar do aspecto “nacionalista” das Forças Armadas, mas observou que esse chamado “patriotismo” se vincula, basicamente, ao conservadorismo. “É inconcebível falar em defesa e ao mesmo tempo destruir o sistema nacional de pesquisa”, afirma. No texto, ele sustenta que o “patriotismo castrense é fundado na percepção que o militar constrói de si mesmo, da sociedade, do Estado e do potencial inimigo”, atendendo, antes de tudo, uma “legitimação corporativa”.

Para Amorim, que também comandou o Ministério da Defesa, a defesa nacional não deveria se misturar com a questão da segurança interna. No livro A Grande Estratégia do Brasil, ele tentou aprofundar esses conceitos e abordar a inserção internacional do país. Ele destacou avanços institucionais, lentos, durante os governos anteriores. “Embora haja muita dificuldade, há espaço para trabalhar nessa área, tendo novamente um governo progressista. Os militares têm vários níveis, eles se comportam de maneira diferente.”

Em fala rápida, o ex-chanceler destacou o momento turbulento que a América Latina atravessa. “Não me lembro de um conjunto de acontecimentos tão dramáticos simultaneamente”, diz. Amorim considera “vergonhoso” o fato de o atual governo brasileiro não ter reconhecido que houve golpe na Bolívia. “Mas não se pode esperar nada de um governo que votou contra a resolução da ONU (que condena o embargo econômico a Cuba)”, acrescentou.