Desvio democrático

Rejeição à PEC 5 reflete ‘campanha de desinformação’

“Não é verdade que a proposta inviabilizaria o trabalho do Ministério Público”, destaca Fábio Kerche. Para o professor, a ampliação do CNMP traria “oxigenação a este conselho que é muito fechado e pune pouco”. Em quase 10 anos, apenas 2,1% dos casos levados ao órgão resultaram em alguma pena, mostra estudo

CNMP/Divulgação
CNMP/Divulgação
Veículos foram unânimes em garantir a divulgação da proposta como "PEC da Vingança", sob o argumento de que ela seria uma resposta política ao Ministério Público por conta da atuação da Lava Jato

São Paulo – Não é verdade, de acordo com o professor de ciência política Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Fábio Kerche, que a ampliação do número de membros do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) proposta pela PEC 5 inviabilizaria o trabalho dos promotores e procuradores. Em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual desta quinta-feira (21), Kerche destacou que a inclusão de três novas vagas na composição do órgão que fiscaliza o Ministério Público (MP), que atualmente conta com 14 membros, levaria “simplesmente a uma oxigenação desse conselho, que é muito fechado e pune pouco”. 

Autor da obra Virtude e Limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil (Edusp, 2009), ele é também um dos responsáveis pelo estudo divulgado na Revista de Administração Pública mostrando que, entre 2010 e 2019, somente 2,1% dos processos sob responsabilidade do CNMP resultaram em alguma punição. Sendo que quase a maioria delas (47%), foram relativamente brandas, como censura, advertência ou admoestação verbal. 

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“Houve uma expectativa quando ele (CNMP) foi criado em 2004 de que seria uma instituição responsável por fiscalizar e acompanhar a atuação do Ministério Público. Mas na verdade, quando a gente observa o conselho, percebe que isso não ocorreu”, pontua Kerche. “Na verdade, o Conselho reforça mais a autonomia de um órgão que já é autônomo. E ele serve ainda como uma espécie de desculpa. Quando se debate com um promotor ou procurador e se aponta que eles têm muita autonomia e isso não é comum nas democracia, o argumento é que eles têm o Conselho Nacional do Ministério Público”, contesta o pesquisador. 

Democracia e a accountability

Como uma forma de aproximar o órgão de suas atribuições iniciais e apresentar um mecanismo de controle para coibir abusos cometidos pela classe, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 5/2021, que alterava a composição do CNMP. A proposta ganhou um texto substitutivo do deputado Paulo Magalhães (PSB-BA) que, na nova versão, entre outros pontos, garantiu ao Congresso o aval da indicação de cinco nomes aos colegiado, em vez de dois. A ampliação, contudo, não alteraria o fato de a maioria continuar com membros do MP e até por isso é vista como uma proposta “tímida” por Kerche.

“A PEC 5 não é e não será efetivamente um controle externo do Ministério Público”, explica. “Uma frase que gosto é de um dos pais da Constituição Americana, o (James) Madison Jr., que falava que ‘os homens não são anjos e por isso precisam de controle’. Sempre falo que os promotores, ao prestarem um concurso público, não ganham asas angelicais. Eles também precisam prestar contas dos seus atos e das suas escolhas. Isso é um pressuposto da democracia.” 

O MP e a simplificação do debate sobre a PEC 5

Mas, na avaliação de promotores e procuradores, o texto fragilizaria a autonomia do MP. Por falta de 11 votos, a PEC 5 terminou sendo rejeitada nesta quarta (20) no Plenário da Câmara. Ainda há, contudo, a possibilidade de ser votado o texto original do deputado Paulo Teixeira. Para o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Cláudio Couto, apesar da margem pequena, a votação acabou sendo atrapalhada por uma campanha de “desinformação e hipersimplificação do problema” dos promotores e procuradores por meio da mídia comercial. 

Veículos foram quase unânimes em garantir a divulgação da proposta como “PEC da Vingança”, sob o argumento de que ela seria uma resposta política ao Ministério Público por conta da atuação da Lava Jato. Uma estratégia semelhante à adotada na década de 1990, quando houve uma proposta para limitar que promotores e procuradores fossem à imprensa fazer acusações antes dos julgamentos, o que foi chamado de “PEC da Mordaça”. Ou, conforme lembra Kerche, na PEC 37, que regulamentava como poder da polícia, e não do MP, a condução de investigações criminais. O texto então recebeu a pecha de “PEC da Impunidade”. 

A avaliação dos especialistas é que, no caso do CNMP, é preciso garantir o papel da promotoria de fiscalizar o MP não na sua atividade-fim, mas em aspectos administrativos. De acordo com Couto e Kerche, a alta discricionariedade e liberdade que é conferida aos membros do Ministério Público é também responsável por modelar uma visão punitivista, que tem menos relação com a lei em si e mais com uma visão individual de mundo, que na prática contribui na lógica do encarceramento em massa. 

Bode expiatório

Couto chama atenção para a decisão “extraordinária” do CNMP que, em meio ao debate da PEC, recomendou a demissão do procurador Diogo Castor de Mattos – colega do coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol –, por conta do uso de recursos na compra do outdoor que promovia a operação. De acordo com o cientista político, o caso serviu como “bode expiatório, com o CNMP recomendando por 6 a 5 sua demissão”.

“Só foi feito agora porque está se discutindo esse assunto. Acho muito pouco provável que viesse a ser punido num momento de relativa calmaria. Veio para disfarçar. Mas é preciso sim mudar a lei. Porque o MP é um poder completamente irresponsável, que cria problemas até mesmo no nível subnacional. É necessário que haja um controle da sociedade, que se dá por meio dos seus representantes eleitos. Não para interferir na independência funcional do MP, mas para coibir abusos e atuações que não estão de acordo com a lei.”

E chantagem

O próprio Dallagnol, que também buscou ofuscar o debate sobre a PEC 5, criticando a proposta como medida contrária ao combate à corrupção, já se beneficiou da atuação no CNMP, que adiou por pelo menos 42 vezes seu julgamento em quatro anos. 

“O Ministério Público está fazendo muito barulho por quase nada. Essa proposta não é uma grande reforma institucional, não estão ‘reformando uma casa’. Eles estão ‘pintando a parede e trocando os móveis de lugar’, mas não é uma reforma profunda. Lamento apenas que muitos políticos, inclusive partidos de esquerda, caiam nessa quase chantagem do Ministério Público de que se essa leve mudança no Conselho, que ainda mantém a maioria dos membros do MP, vai inviabilizar o seu trabalho. Isso não é verdade e é injusto com aqueles que defendem a PEC, porque é uma simplificação do debate. Nessa lógica, se você é a favor da PEC você é contra o Ministério Público, e isso não é verdade”, finaliza Fábio Kerche.