legalização da grilagem

‘Reforma agrária’ de Tarcísio: fazendeiros pedem a regularização de 165 áreas que ocupam no Pontal do Paranapanema

Fundadas há décadas em terras públicas, a maioria dessas fazendas é do tamanho de municípios paulistas. Dos interessados, quase todos têm grandes fazendas em outros estados. Uma família chega a pedir a regularização de 14 fazendas. A lista inclui ainda área que teve disputa com o Incra

Reprodução/YouTube
Reprodução/YouTube
Gado na Fazenda Miralua, em Marabá Paulista, no Pontal do Paranapema: governo pretende entregar fazenda por desconto de 90%

São Paulo – Grandes fazendeiros apresentaram ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), requerimentos para regularização de 165 fazendas que ocupam de maneira irregular há décadas. O número, porém, pode ser maior, já que a lista inclui processos abertos até 22 de agosto. Segundo a planilha a que a RBA teve acesso com exclusividade, a área total a ser regularizada soma 100.354,94 hectares. É equivalente a 1.003,55 quilômetros quadrados, mesmo tamanho do município paulista de Araraquara. E corresponde a pouco mais de 5% da área total da região do Pontal do Paranapanema, onde estão essas fazendas irregulares. 

Aliados do governo bolsonarista, esses ruralistas querem se aproveitar da possibilidade aberta pelo Programa Estadual de Regularização de Terras, criado pela Lei Estadual de São Paulo 17.557, de 21 de julho de 2022, regulamentada pelo decreto 67.151, de 4 de outubro de 2022. Na prática, a política tem por finalidade a celebração, judicial ou administrativa, de acordos e transações, entre a Fazenda do estado e os ocupantes de terras devolutas – terras pertencentes ao estado que ainda não tiveram destinação para outros fins, inclusive de reforma agrária. E garante bons negócios, já que o governo paulista incluiu no programa a concessão de descontos que chegam a 90%.

É o caso da Fazenda Miralua, localizada no município de Marabá Paulista, que já foi avaliada no âmbito do programa pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” (Itesp). Seu valor é de R$ 19.181.044,76, mas deverá ser entregue por R$ 1.918.104,48. Ou seja, valor correspondente a 10% da chamada terra nua, assim chamado o móvel rural que não tem nenhum investimento, nenhum equipamento ou construções que permitam a atividade rural.

Ocupada pela família do desembargador Spencer Almeida Ferreira, a Miralua já tem parecer favorável da Secretaria de Agricultura e de Abastecimento e da Procuradoria Geral do Estado. Ou seja, o governo já deu mais um passo no sentido da regularização, com desconto de 90%.

Rainha do gado com fazendas em outros estados

Outra fazenda igualmente adiantada no processo é a São João, em Marabá Paulista, pleiteada pela fazendeira Claudia Irene Tosta Junqueira. A ruralista deverá legalizar a área de 1.344 hectares avaliada pelo Itesp em R$ 20.133.864,81. Mas pagará o valor de R$ 4.429.450,26. Criadora de gado zebu, a pecuarista tem fazenda em Guará (SP) e dirige os negócios da família. Segundo a mídia especializada, esses negócios incluem fazendas de gado comercial em Camapuã e Bataguassu, no Mato Grosso do Sul. Figura constante em feiras, foi diretora da Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ), entidade que tem laços estreitos com o governador paulista.

O programa de regularização que dará mais cartaz a Tarcísio entre os fazendeiros, em uma área que já foi palco de violentos conflitos agrários, foi criado e aprovado pelo governo anterior, de Rodrigo Garcia (PSDB). Em junho de 2022, em Presidente Prudente, ele foi claro ao mostrar o lado do governo sobre a questão. Disse ao portal g1 não acreditar na reforma agrária como um instrumento de inclusão social. E que por isso não pretendia assentar famílias de trabalhadores sem-terra. “Nós conseguimos avançar na regularização de assentamentos existentes e partimos para apoiar a regularização de médias e grandes propriedades. Porque, quando você regulariza, você traz investimento”, disse, em visita a Presidente Prudente, no Pontal do Paranapanema.

Na ocasião, defendeu o projeto de sua autoria que estava em tramitação no legislativo paulista. “Espero que seja aprovado o mais rápido possível e terá minha sanção, para que a gente consiga dar esse passo de regularização que vai abrir a porteira para muito investimento. Então, o homem do campo terá mais renda, vai gerar mais emprego, então, é um esforço muito grande”.

A legislação foi aprovada e sancionada. Mas em dezembro o PT ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.326, pedindo ao Supremo Tribunal Federal (STF) a declaração de inconstitucionalidade da lei e do decreto que a regulamenta. Diante disso, o governo paulista, com Tarcísio de Freitas, teve de correr para tentar passar a boiada da entrega das terras paulistas para os fazendeiros antes da queda da lei. No âmbito da ADI, a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União já emitiram pareceres contrários à reforma agrária às avessas.

A legenda questiona, entre outras indagações:

  • A falta de estimativas do impacto orçamentário e financeiro da evidente renúncia a receitas com as idealizadas alienações dos imóveis públicos estaduais;
  • Que a aplicação da lei resultará em um dos maiores processos de perda de patrimônio público da história do Estado de São Paulo, além de promover sensível aumento do quadro de concentração de terras nas mãos de poucos;
  • Que as propostas se contrapõem à legislação federal, que visa a garantia da isonomia, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais;
  • E que os propalados benefícios econômicos, ainda não comprovados, não podem se sobrepor à função social da propriedade, sendo certo que não se pode, sob qualquer argumento, retirar os direitos sociais dos programas e discussões referentes à reforma agrária ou da política urbana;
  • Além disso, que a lei estadual paulista, na verdade, se presta a dar guarida, premiar e incentivar a atividade grileira em terras públicas, em regra dotadas da característica da indisponibilidade.

Na semana passada, a relatora da ADI, ministra Cármen Lúcia, pautou o julgamento, que terá início no próximo dia 10. O término está previsto para o dia 20.

À RBA, o deputado estadual Paulo Fiorilo (PT), líder da Federação PT-PCdoB-PV, disse que em caso de declaração de inconstitucionalidade, todos os trâmites amparados na legislação voltam à estaca zero. “Como primeiro impacto, o governador Tarcísio terá de interromper as vendas das terras devolutas e voltar atrás naquilo que já foi feito. O governo terá então de fazer um novo recuo em suas políticas”, disse, referindo-se ao episódio da dispensa dos livros do programa do Ministério da Educação (MEC). “A diferença é que, se o STF derrubar, não terá como recorrer.”

Dessas 165 áreas cujos ocupantes reivindicam a regularização, a maior é a Fazenda Santa Rita, em Rosana. Com 2.710 hectares, equivalente a 27,1 quilômetros quadrados, é pouco menor que o município de Jandira, na Grande São Paulo. Ocupada por Ione Gargione Junqueira Binford e Thomas Oriel Binford, que moram nos Estados Unidos, a área tem histórico de disputas. E tiros em liderança dos sem terra.

Tiros em líder sem-terra em defesa de fazenda que agora busca regularização

Em janeiro de 2002, o juiz federal Cláudio de Paula dos Santos, da 1ª Vara de Presidente Prudente, acolheu ação do Incra e autorizou os procedimentos para o assentamento de famílias sem terra na área. No final de fevereiro, porém, as terras foram consideradas produtivas e o Incra teve de suspender os trabalhos. Nesse meio tempo, 270 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam a área para pressionar a aceleração do processo. Em 19 de janeiro, o então líder do MST, José Rainha Junior, foi baleado em emboscada.

O autor dos disparos foi o irmão da ocupante da fazenda, Roberto Gargione Junqueira, que inclusive pleiteia a regularização da Fazenda Junqueira 2, com 1214,8287 hectares. Ou seja, 12,14 quilômetros quadrados, pouco menor que São Caetano, no ABC Paulista. E seu filho, Roberto Gargione Junqueira Filho, quer regularizar a Fazenda Junqueira 1, com 1942,27 hectares, equivalente a 20 quilômetros quadrados, igual ao Taboão da Serra.

Entre os interessados na regularização aparecem outras famílias conhecidas, também os Junqueira Vilela, com fazendas em Sandovalina. Antonio José Junqueira Vilela Filho quer regularizar a Fazenda JunqueiraVi 2. Sua irmã, Ana Paula Junqueira Vilela Carneiro Vianna, a Fazenda JunqueiraVi 3. A outra irmã, Ana Luiza Junqueira Vilela, a Fazenda JunqueiraVi 1. Cada uma das três fazendas mede 491,1 hectares. A Fundação Itesp já avaliou em R$ 7.079.610,51 a fazenda de Antonio José, que deverá pagar apenas R$ 707.961,05.

Além disso, a Sociedade Comercial AJJ, da mesma família, pleiteia a regularização de três fazendas, que totalizam 2421,73 hectares. Com isso, a família quer legalizar como pessoa física 4.138,95 hectares, ou 41,39 quilômetros quadrados. Uma área pouco menor que o município de Vargem Grande Paulista.

Fazendeiros tentaram extinguir parque em Mato Grosso

Antonio e Ana Luiza tiveram o nome associado à operação Rios Voadores, do Ministério Público Federal, em 2016. Foram acusados pelo Ibama, Polícia Federal e o MPF transformar 290 quilômetros quadrados de floresta de Altamira (PA) em pastagens. No entanto, em novembro de 2019 a Justiça Federal em Itaituba (PA) rejeitou denúncia por crime ambiental, alegando falta de provas.

O empresário, porém, sofreu um revés na Justiça do Mato Grosso, nesse caso contrário a seus interesses. O tribunal suspendeu a extinção do parque estadual Cristalino 2. Em 2011, a Sociedade Comercial Triângulo Ltda, ligada Antonio Junqueira Vilela Filho, derrubou na Justiça a legislação que criou o parque, no extremo norte do estado, divisa com o Amazonas. Segundo o argumento, a unidade de conservação teria afetado diretamente três imóveis de sua titularidade. E que não houve estudos técnicos e consulta pública antes da edição do decreto que instituiu o parque estadual.

Chama ainda atenção na lista de interessados a família de Antônio Augusto Almeida Catarino da Fonseca Pereira. Ao todo é pleiteada a regularização de 14 fazendas, que somam 4.481,5671 hectares. Ou 25 quilômetros quadrados, pouco menor que o município de Ferraz de Vasconcelos.