Mensalão, a nova tentativa conservadora para influenciar a reta final das eleições

A criação de fatos às vésperas de pleitos decisivos não é novidade: novo é que o Supremo Tribunal Federal seja aliado da ação da mídia tradicional para influenciar o voto

Farsa montada em 2010, amplamente divulgada pela mídia sobre uma suposta agressão, foi revelada em filmagem do SBT como uma simples bolinha de papel no então candidato José Serra (Foto: Reprodução/SBT)

Rio de Janeiro – Encarado por muitos críticos como algo mais do que uma mera coincidência, o fato de o julgamento dos ex-dirigentes petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares ocorrer às vésperas das eleições municipais fez crescerem em todo o Brasil as queixas quanto ao suposto tratamento político dado ao caso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela mídia tradicional. Explorar um fato jornalístico com o claro intuito de modificar um cenário não desejado nas urnas, no entanto, não é prática nova das elites do país nem novidade na recente história eleitoral brasileira.

Professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Francisco Fonseca afirma que “a mídia no Brasil tem um longo histórico partidário”, e que este se revela em dois sentidos: “A mídia conservadora pode ser partidária de uma ideia. O exemplo das privatizações foi muito claro nesse sentido, pois houve um consenso forjado por parte da grande imprensa que deixou de lado, inclusive, pessoas que sequer eram críticas à privatização, mas apenas ao seu modelo. A mídia também tem grande tradição de ser partidária de determinadas ideias que envolvem interesses do grande capital. Sobretudo em épocas eleitorais, é partidária em relação a candidatos e partidos”.

A cobertura do julgamento do mensalão, segundo Fonseca, obedece a essa tradição. Na primeira sessão desta semana, os ministros do STF ratificaram a visão de que o crime se tratou de uma compra de votos de parlamentares para obter apoio político – a tese da defesa dos réus é de que houve caixa dois, crime reconhecido pelo ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares. No mês de setembro, a revista Veja publicou reportagem construída com base em supostos relatos de amigos e parentes do publicitário Marcos Valério, tido como operador do esquema, falando que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva saiba da existência do crime. “O que nós estamos observando uma vez mais é uma oposição muito forte de grande parte dos órgãos da mídia no Brasil em relação à figura do ex-presidente Lula ou de uma figura de esquerda, seja ela qual for, que surja como uma alternativa real de poder no Brasil”, lamenta Fonseca.

A diferença desta vez, segundo o professor da FGV, é a presença de uma instituição com o peso do Supremo Tribunal Federal: “O STF ao deixar o julgamento de José Dirceu e do núcleo político para o final, às vésperas da eleição, dá muito combustível à mídia em sua clara tentativa de construir uma alternativa política e eleitoral para as próximas eleições presidenciais. O Supremo se coloca como um agente que tem o cronograma eleitoral na mão, e o relator do processo expressa uma condenação prévia. Nesse contexto da vida política nacional, o STF se coloca também praticamente de uma forma partidarizada, o que me parece muito perigoso para a democracia institucional”. Quarta e quinta-feira desta semana o relator da Ação Penal 470, Joaquim Barbosa, emite seu voto sobre o chamado “núcleo político”, ou seja, Dirceu e Genoino. O ex-ministro da Casa Civil teve a imagem utilizada pelo candidato do PSDB à prefeitura de São Paulo, José Serra, na propaganda contra o adversário Fernando Haddad (PT).

A história é longa

A série de tentativas de influenciar ou determinar o resultado das eleições a partir da exploração de fatos criados ou amplificados pela grande mídia começou em 1982, logo no início da retomada do processo democrático, com o Caso Proconsult. Assim ficou conhecida a tentativa de fraudar o pleito para o governo do Rio de Janeiro e impedir a vitória do candidato do PDT, Leonel Brizola, que voltara havia pouco mais de dois anos do exílio e era considerado persona non grata pelas elites brasileiras. 

Organizada pela Proconsult, empresa de informática ligada ao regime militar, a fraude consistia em direcionar parte dos votos brancos e nulos para o candidato Moreira Franco (PDS), principal adversário de Brizola. Reproduzida como verdadeira nas manchetes de alguns dos principais jornais do país, a apuração fraudulenta, que teve a suposta “benção” do dono das Organizações Globo, Roberto Marinho, foi denunciada pelo PDT e amplamente divulgada pelo concorrente Jornal do Brasil. 

Brizola saiu vitorioso e renascido politicamente dessa disputa com as forças conservadoras, mas esse não foi o resultado mais comum nos enfrentamentos seguintes, quando a “vítima” já era o PT. O ensaio ocorreu nas eleições de 1986, quando os candidatos do partido aos governos estaduais foram, em maior ou menor grau, alvo de campanhas depreciativas ou difamatórias que encontraram generoso eco na grande mídia. 

O caso mais notório foi o de Fernando Gabeira (coligação PT/PV) no Rio de Janeiro, que além de ter seu passado de “terrorista” permanentemente lembrado, foi “acusado” de homossexual e usuário de drogas. Repercutido marotamente pela mídia, o anti-slogan “Quem fuma e cheira, vota no Gabeira” colou naquelas eleições e hoje faz parte do anedotário político nacional. O vencedor foi Moreira Franco, já no PMDB, apoiado pelos principais veículos. 

Naquele mesmo ano, Luiz Inácio Lula da Silva, eleito deputado federal por São Paulo com a maior votação individual até então registrada na história das eleições no Brasil, começou a provar do veneno oferecido pela mídia, que o apresentava como ignorante, radical e inimigo do bom uso da língua portuguesa. Mas foi em 1989 que a mão pesou contra Lula e o PT com dois casos emblemáticos: o sequestro do empresário Abílio Diniz e a “denúncia”, feita pela campanha de Fernando Collor (PRN), de que o petista teria pedido à mãe de sua primeira filha para fazer um aborto. 

Às vésperas do segundo turno entre Collor e Lula, o sequestro do dono dos supermercados Pão de Açúcar mereceu intensa cobertura da mídia. Com o crime desbaratado exatamente na véspera da eleição, foram divulgadas por toda a grande imprensa as declarações do então delegado Romeu Tuma dando conta de que os seqüestradores pertenciam a um grupo de extrema-esquerda chileno e que com eles havia sido encontrado material de propaganda política do PT. Alguns jornais chegaram a publicar na primeira página: “PT sequestra Abílio Diniz”. 

Se havia alguma chance de Lula vencer aquelas eleições, elas foram sepultadas em uma única semana, quando também foi veiculado pela campanha de Collor o depoimento da ex-mulher do petista falando sobre a proposta de aborto. Na época, a declaração foi repetida e amplificada pelos mesmos grandes veículos de mídia que, após o impeachment de Collor, passaram a considerar execrável a exploração do caso. A já famosa – e tendenciosa – edição feita pela TV Globo do último debate entre os dois candidatos foi a cereja no bolo da mídia que, servido aos eleitores brasileiros, afastou o fantasma da vitória de Lula naquela ocasião. 

Em 1992, a ampla divulgação de um suposto arrastão nas praias da zona sul do Rio de Janeiro tirou uma vitória que parecia certa da candidata do PT à prefeitura, Benedita da Silva. Na época, matérias publicadas nos principais jornais do país lembravam que o arrastão acontecera na praia do Leme, próxima à comunidade Chapéu-Mangueira, onde vivia Benedita. Primeira colocada nas pesquisas, a petista acabou derrotada no segundo turno por Cesar Maia (PMDB). 

Da Lúnus à bolinha

Mais recentemente, outras tentativas de influenciar o resultado das eleições a partir da amplificação de fatos na mídia ganharam notoriedade. Em 2002, quando a candidatura de Roseana Sarney (PFL) aparecia cada vez mais forte nas pesquisas para a Presidência da República, uma operação da PF apreendeu R$ 1,3 milhão não contabilizados nos cofres da empresa Lúnus, administrada por Jorge Murad, marido da candidata pefelista. Amplamente divulgada pela mídia, a imagem da montanha de dinheiro vivo apreendida sepultou as chances de Roseana, que acabou retirando sua candidatura.

Fonseca avalia que a mídia é um ator político-ideológico muito claro. “A grande mídia no Brasil é privada e tem interesses privatistas. Isso a faz bastante conservadora. Os conflitos sociais no Brasil são criminalizados, de um modo geral, por meio da mídia. A mídia, de alguma maneira, está contra a democracia no Brasil”, diz, lembrando que Judith Brito, dirigente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), declarou antes das eleições de 2010 que a oposição política no país estaria sendo realizada pelos órgãos da mídia. 

Em 2006, na primeira eleição presidencial após o estouro do escândalo do mensalão, o caso serviu de munição permanente à mídia conservadora nas semanas que antecederam a votação. Mas, um episódio surgido nas eleições de São Paulo – o caso dos “aloprados” – acabou sendo decisivo para levar a disputa entre Lula e Geraldo Alckmin (PSDB) ao segundo turno. Na ocasião, mereceu intensa repercussão na mídia a prisão de pessoas ligadas ao PT após a suposta tentativa de compra de um falso dossiê contra o candidato tucano ao governo paulista, José Serra. Após o esvaziamento das primeiras versões apresentadas para o caso, Alckmin acabou tendo no segundo turno uma votação inferior à que tivera no primeiro turno. 

Nas últimas eleições presidenciais, há dois anos, houve três tentativas mal-sucedidas de reverter a ascensão da candidata do PT, Dilma Rousseff, com a utilização de fatos amplamente explorados na mídia conservadora. A mais importante delas foi a denúncia, publicada em reportagem da revista Veja, de que um filho da então ministra da Casa Civil, Erenice Guerra, estaria atuando como lobista junto a empresários em Brasília para facilitar contratos com o governo. Erenice, que havia sido secretária-executiva de Dilma na Casa Civil, foi afastada do cargo, apesar de a principal fonte para a matéria da Veja ter desmentido a revista. Mesmo tendo sua ligação com Erenice “analisada” à exaustão pelos principais telejornais do país, Dilma venceu as eleições. 

Outro episódio em 2010 ocorreu com a divulgação pela grande mídia da tentativa de quebra do sigilo fiscal de Verônica Serra, filha de José Serra, atribuída ao governo. O candidato tucano revelou sua “indignação de pai” no Jornal Nacional da TV Globo, e o jornal O Estado de São Paulo publicou a manchete “Serra acusa Dilma de usar filho dos outros para ganhar eleição” ao lado de outra “Ministro admite investigação de crime eleitoral em quebra de sigilo”. A quebra de sigilo a mando do governo, no entanto, jamais foi comprovada. 

Como último recurso em 2010, a grande mídia se valeu de uma suposta bobina de fita que teria sido atirada “por petistas” na cabeça de José Serra para divulgar com grande impacto a internação do candidato tucano, que chegou a fazer uma tomografia, acompanhada com entradas ao vivo feitas por algumas emissoras. Mais tarde, no entanto, filmagens feitas por amadores – e até pelas lentes do SBT – no local do episódio revelaram que o tucano, na verdade, havia sido atingido por uma inofensiva bolinha de papel. Foi mais uma tentativa que não conseguiu impedir a vitória de Dilma.