DIREITOS HUMANOS

Depoimento de vítimas de violência policial em manifestações choca deputados

Parlamentares se mostraram impressionados com teor da violência imposta a cidadãos em várias cidades do país. Procuradora do MPF disse que vítimas devem fazer denúncias e não se intimidar

Lucio Bernardo Junior / Câmara dos Deputados

Comissão de Direitos Humanos e Minorias ouviu, na tarde desta quarta-feira, três vítimas de violência

Brasília – Parlamentares, cidadãos, representantes de entidades da sociedade civil e a procuradora federal dos direitos do cidadão junto ao Ministério Público Federal (MPF), Débora Duprat, destacaram hoje (14), em reunião da Câmara dos Deputados que analisou o aumento da violência policial contra manifestantes, a importância de as pessoas denunciarem todos os casos das quais forem vítimas. E, principalmente, de procurarem as procuradorias e tentarem combater esses procedimentos, tanto do ponto de vista jurídico, como também indo às ruas para defender direitos e evitar retrocessos.

A constatação foi observada durante audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM), que ouviu, na tarde desta quarta-feira, três vítimas de violência nos atos observados nos últimos dias contra o governo Michel Temer no Paraná, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal. Ouviu, também, o jornalista Fausto Salvatori Filho, que descobriu o agente do Exército Willian Pina Botelho infiltrado em meio a um grupo de estudantes em São Paulo.

Os depoimentos chocaram os deputados. Além disso, detalhes sobre a atuação do agente do Exército levou a uma percepção, ainda a ser comprovada, de que o acompanhamento e monitoramento de manifestantes e movimentos sociais por forças de segurança existem há muito tempo, devido às impressões e pistas deixadas pelo agente que foi descoberto. “Os relatos que vimos aqui são impressionantes. Mostram que, mais do que violência, estas pessoas foram torturadas, perseguidas e coagidas”, disse o vice-presidente da comissão, deputado Nilto Tato (PT-SP).

“Por outro lado, nos levam à certeza de que quanto mais pessoas estiverem na rua lutando pela democracia e para evitar a perda de nossos direitos, mais estaremos combatendo essas táticas”, afirmou Tato, depois de ouvir os depoimentos de três vítimas. Uma delas, a médica Maria Alessio, do Distrito Federal, contou sobre como foi abordada, parada e detida por policiais por demonstrar solidariedade, do seu carro, a uma manifestação realizada na Esplanada dos Ministérios, em 31 de agosto, dia da votação final do impeachment, por pessoas que gritavam “Fora, Temer”.

“Eu não estava participando da passeata, estava passando com o meu carro no local por acaso e demonstrei apoio aos manifestantes. Fui parada por uma viatura policial e levada para a delegacia. Recebi uma multa do Detran, sendo que não havia agente do Detran na área, e uma autuação por desobediência”, contou.

Pimenta e lacrimogêneo

Maria Alessio disse ainda que no mesmo ato que culminou com sua detenção foram jogados, ao final, spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo nos manifestantes, que durante todo o percurso se comportaram de forma pacífica. “Achei que essa ação policial foi praticamente uma emboscada contra os manifestantes. Foi uma tentativa de coação. O que se esperava de cidadãos num dia de comoção com o resultado final do impeachment? Que não se manifestassem?”, questionou a médica.

Em proporções ainda piores foi registrado o caso do advogado Mauro Silva dos Santos, de Caxias do Sul (RS). Emocionado em alguns momentos, o advogado relatou que no dia 31 de agosto foi buscar um dos filhos que estava em área onde se realizava uma manifestação e, próximo do local, o filho lhe telefonou dizendo “pai, acho que estamos precisando de um advogado”.

Ao chegar e tentar interferir na ação policial contra os jovens, Santos foi preso, algemado, levado à delegacia e sofreu tortura. “Sofri horrores, humilhações que prefiro não descrever aqui, inclusive o tal do pacotinho”, disse – ao descrever a forma como é chamada a prática em que algemam a pessoa pelas costas e colocam as suas pernas para dentro do corpo, de forma que a pressão das algemas provoque fortes dores.

“Mas isso não é o que mais importa. A gente vê o que é o poder do Estado numa situação dessas. Quando clareou o dia os contatos e recados que chegaram aos telefones dos meus filhos eram todos de conhecimento dos policiais. Se um advogado, que é o profissional que defende as pessoas, é tratado dessa forma, o que sobra de cidadania no país? O que sobra do Estado democrático de direito?”, indagou.

O advogado Renato de Almeida Freitas Júnior, do Paraná, passou por situação parecida. Morador da periferia de Curitiba, ele estava no seu carro ouvindo música com dois amigos, no centro da cidade. Ao ser abordado por policiais, disse que era advogado, nada tinha feito e mostrou todos os documentos. Escutou dos policiais que “neguinho com cara de dingo não pode ser advogado”.

“Fui algemado, levado até a viatura, mas eles esqueceram de me tirar o celular. Na mala da viatura, fiz vários malabarismos e consegui postar uma mensagem no Facebook contando que estava sendo preso. Eles descobriram, pararam o carro, me tiraram o celular, me esmurraram e me pisotearam, inclusive no rosto. Na cela, me deixaram absolutamente nu diante de outros policiais por aproximadamente quatro horas.”

De acordo com o advogado, o que mais o estarrece é o que ele chamou de “retorno aos tempos da barbárie”. “Não vou deixar esse episódio passar em branco e vou procurar fazer justiça não apenas em relação ao que aconteceu comigo, mas em relação ao que acontece todos os dias com os meus amigos”, afirmou.

Para o presidente da comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Padre João (PT-MG), o país não pode ficar calado. Por isso, os parlamentares estão se programando para fazer reuniões país afora com o objetivo de discutir os vários casos observados e convocar outras vítimas para novas audiências públicas. A CDHM também vai pedir esclarecimentos às prefeituras e governos estaduais de todos os locais onde moram as pessoas que prestarem depoimentos.

Os integrantes da comissão vão votar, na próxima reunião, requerimentos convidando  representantes do Executivo federal para dar explicações sobre o caso: os ministros da Justiça, Alexandre de Moraes, e da Defesa, Raul Jungmann. “Quando a gente tem uma avaliação no Brasil de que os movimentos sociais são uma conquista, saber de casos como esses é revoltante, mostra a necessidade de reagirmos”, afirmou Padre João.

O jornalista Fausto Salvatori Filho, do coletivo Ponte Jornalismo, que descobriu a participação do sargento do Exército infiltrado num grupo de estudantes em São Paulo, há poucos dias, afirmou que foi o fato de a prisão dos estudantes ter sido  feita de forma qualificada por ele como absurda – com uma lista de material apreendido que, em sua opinião “chega a ser risível” – e, em contradição a isso, o forte aparato policial armado, que levou os próprios estudantes a começarem a desconfiar da pessoa identificada como Malta entre eles.

“A detenção deles foi feita por dez viaturas, um ônibus e um helicóptero da polícia. É claro que não se tratava de uma ação de policiais que estavam passando pelo local”, disse. De acordo com Salvatori, depois de confirmar que Malta era, na verdade, o sargento do exército Willian Pina Botelho, ele descobriu que o agente procurava se aproximar dos jovens por meio de redes sociais, inclusive aplicativos de paquera. Primeiro, tentando uma conversa. Depois, puxando a conversa para o lado do ativismo político e perguntando se as pessoas não iriam participar de alguma passeata ou ato público.

“Descobrimos que esse tipo de iniciativa vinha sendo tomada, por parte do sargento, desde 2014. Ou seja, é um monitoramento que começou a ser feito antes de toda essa turbulência política no país”, destacou.

A procuradora Débora Duprat pediu que as pessoas denunciem casos como esses nas procuradorias do MPF em todos os estados. Débora afirmou que está sendo alvo de representações por parte do Ministério Público de São Paulo com o argumento de que tenta se intrometer numa esfera que não é da sua alçada, por ter pedido explicações sobre o caso. Mas destacou que não vai se abalar em relação a isso, até porque entende que é sua função tratar de questões como essas.

Débora observou que muitas dessas ações violentas são resultado da falta que faz uma política de transição no país, o que leva, a seu ver, a um atraso histórico. “Temos de ter força, todos nós, porque estes procedimentos remetem-nos à prática da ditadura”, acentuou.

Segundo ela, o que mais a preocupa hoje é o que definiu como “certa imunização da polícia”. “A Constituição de 1988, que é nosso grande instrumento emancipatório, nos garante o direito de nos manifestarmos e o direito de reunião. O direito à crítica e a manifestação é o oxigênio das democracias. A tentativa de coibir isso está na contramão de fóruns de direitos humanos internacionais e de orientação do Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive”.

A procuradora afirmou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) estabeleceu que movimentos sociais não podem ser monitorados, porque isso fere o direito à livre manifestação das pessoas. De acordo com Débora, o Brasil tem, atualmente, dois instrumentos considerados perversos e antidemocráticos em relação à coibição das manifestações: a lei antiterrorismo (Lei 13.260) e a lei que combate organizações criminosas (Lei 12.850).

“Uma simples garrafa de álcool ou uma caixa de fósforos podem ser considerados por policiais como produtos que serão usados para um ato terrorista”, reclamou. Para a procuradora, os tempos são difíceis, mas é preciso que as pessoas estejam preparadas para enfrentá-los em todos os setores – no Judiciário, nas ruas e junto a entidades e instituições que ajudem na defesa dos seus direitos como a CDHM.

DEPOIMENTOS DAS VÍTIMAS:

Maria Alessio, médica – Moradora de Brasília (DF):

“Estava passando com meu carro por uma passeata que estava sendo realizada na Esplanada dos Ministérios, logo após o resultado final do impeachment. As pessoas gritavam ‘Fora, Temer’. Eu não estava participando da passeata, mas diante do engarrafamento, como estava próxima, comecei a buzinar e apoiar os manifestantes e entoar o coro de ‘Fora, Temer’ também. Fui de imediato abordada por policiais que tiraram várias fotos do meu rosto, da placa do meu carro e disseram que eu saísse imediatamente do local porque estava atrapalhando o trânsito. Argumentei que não estava, pois outros carros estavam parados também, aguardando para passar, mas em seguida fui embora. Quando saí da Esplanada e estava próxima da rodoviária do Plano Piloto, alguns metros depois, fui abordada por um carro da polícia que encostou no meu, mandando que parasse. Eles me pediram todos os documentos e disseram que eu precisava acompanhá-los até uma delegacia. Reagi dizendo que era uma trabalhadora, uma cidadã, que não tinha atrapalhado nada e tinha o direito de me manifestar. Tive de ficar na rua aguardando por dez minutos eles se comunicarem com outros policiais e fui conduzida para a delegacia entre duas viaturas policiais. Recebi uma multa do Detran e uma autuação por desobediência. Enquanto eu estava com o carro parado, o pessoal da passeata estava se aproximando do local e vários manifestantes, que me reconheceram como a pessoa que os apoiou anteriormente, pegaram seus carros e me seguiram até a delegacia. Pouco tempo depois desse episódio, o que se contou que houve foi o lançamento de bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta contra os manifestantes, sem que houvesse necessidade para isso. Não tinha sido visto um único ato de violência na passeata. Um dia antes, estive no Palácio da Alvorada ao lado de amigos para prestar homenagem à presidenta Dilma Rousseff. Cheguei atrasada e, diante de um pequeno tumulto observado no local, com muitos policiais tentando impedir a entrada dos manifestantes, perguntei a um deles o motivo pelo qual estavam ali quando deveriam ficar dentro do Palácio, cuidando da segurança da presidenta. Ouvi em resposta: ‘presidenta? que presidenta? Dilma? Quem é essa mulher? Ela já tem segurança suficiente lá dentro’”.

Mauro Silva dos Santos, advogado – Morador de Caxias do Sul (RS)

“No dia 31 de agosto fui buscar um dos meus filhos, como fazia sempre. Ele estava numa área onde havia uma manifestação e antes de chegar lá, meu telefone tocou. Era ele dizendo ‘pai, acho que estamos precisando de um advogado por aqui’. Quando cheguei no local vi meninos muito jovens sendo abordados de uma forma violenta e sem motivo por policiais. Num momento desses você não é um advogado, é um pai. Encontrei uma situação difícil e poderia pensar: ‘vou pegar meu filho, dar as costas e ir embora’. Mas preferi interferir e correr o risco, fazendo meu papel de cidadão. Fui preso, algemado, levado à delegacia e sofri práticas de tortura que prefiro não detalhar aqui. Sofri horrores, humilhações que não quero descrever, inclusive o tal do pacotinho, que é a prática em que algemam a pessoa pelas costas e colocam as pernas para dentro do corpo de forma que faz a pressão das algemas machucar muito. Ainda estou sem movimento na mão esquerda por conta disso. Mas isso não é o que mais importa. A gente vê o que é o poder do Estado numa situação dessas. Quando clareou o dia os contatos e recados que chegaram aos telefones dos meus filhos já eram todos de conhecimento dos policiais. Se um advogado, que é quem defende as pessoas, é tratado dessa forma, o que sobra de cidadania no país? O que sobra do Estado democrático de direito? Acho que o cidadão não pode ser visto como um inimigo e a legislação deixa claro que o papel das Polícias Militares é proteger, não tratar as pessoas dessa forma. A melhor forma de se combater tais práticas é seguir lutando. Não podemos nos acovardar neste momento, ficar em casa e evitar denunciar o que sofremos. Vamos continuar lutando pelos direitos humanos acima de tudo e seguir. Porque não há outro caminho”.

Renato de Almeida Freitas Júnior , advogado – Morador de Curitiba (PR).

“Estava sentado no meu carro com dois amigos ouvindo música no centro da cidade. Chegaram uns policiais nos abordando. Expliquei que era advogado, mostrei todos os meus documentos, mas eles deram a entender que achavam que se tratavam de documentos falsos. Escutei deles que ‘neguinho com cara de dingo não pode ser advogado’. Dingo é a forma como chamam mendigos na minha terra. Fui algemado e levado até a mala da viatura. Quando percebi que eles tinham esquecido de me tirar o celular, fiz vários malabarismos e consegui postar uma mensagem no Facebook contando que estava sendo preso. Eles descobriram, pararam o carro, me tiraram o celular, me esmurraram e me pisotearam. Reagi dizendo que não diria deixar isso em branco e eles pagariam pelo que estavam fazendo. Foi nesta hora em que um deles pisou no meu rosto. Na cela, me deixaram absolutamente nu diante de outros policiais por aproximadamente quatro horas. O que mais me estarrece nisso tudo é perceber que está havendo um retorno aos tempos da barbárie. Não vou deixar esse episódio passar em branco e vou procurar fazer justiça, não apenas em relação ao que aconteceu comigo, mas em relação ao que acontece todos os dias com os meus amigos. Por viver em áreas de periferia, ser filho de pais nordestinos que migraram para o Paraná, ter origem humilde, estava acostumado a saber de coisas desse tipo. Mas acho que o fato de ser advogado e atualmente fazer mestrado, por meio de políticas de inclusão social, já pode ter sido visto como uma forma de chamar a atenção desse pessoal para a agressão a mim. Afinal, sou fruto das políticas de inclusão dos últimos governos, que permitiram a várias pessoas pobres o acesso à universidade e melhoria de vida. A impressão que tudo isso passa é que o que era visto como um direito do cidadão antes desse golpe, agora passou a ser entendido como uma caridade. Não podemos nos calar”.