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Artistas cantam a democracia e exigem ‘Fora, Temer’ no Circo Voador

Reunidos pelo projeto Canta a Democracia, dezenas de artistas encenaram para um circo lotado o inédito espetáculo 'A Farsa – o enredo tragicômico de um golpe'

MÍDIA NINJA

Espetáculo, com show musical, esquetes teatrais e vídeos denuncia ameaças à democracia e pede a volta de Dilma

Rio de Janeiro – Espaço mítico desde os anos 1980, quando se tornou berço do novo rock brasileiro e ponto de encontro daqueles que lutavam pelo fim da ditadura civil-militar (1964-1985), o Circo Voador, localizado no boêmio bairro carioca da Lapa, voltou na noite de ontem (23) a cumprir seu papel de polo de resistência política e cultural. Reunidos pelo projeto “Canta a Democracia”, dezenas de artistas encenaram para um circo lotado o inédito espetáculo A Farsa – o enredo tragicômico de um golpe, mistura de show musical com esquetes teatrais e vídeos que denuncia as ameaças à democracia no Brasil e pede a volta da presidenta Dilma Rousseff.

Repetido à exaustão, o bordão “Fora, Temer!” deu o tom da montagem, que teve direção teatral de Ernesto Picollo e a parte musical sob o comando de Edgard Scandurra, André Abujamra e Orlângelo Leal. O objetivo do espetáculo, segundo seus organizadores, é “defender um Brasil que já teve importantes conquistas e não pode voltar para trás”.

Responsável pela produção, a documentarista Luciana Sérvulo da Cunha conta que a ideia nasceu quando ela viu uma matéria na Telesur dizendo que o presidente argentino Mauricio Macri tinha fechado acordo com os Estados Unidos para a abertura de algumas bases militares norte-americanas na Argentina: “Ficamos um pouco apavorados quando, no finalzinho de maio, o ministro golpista José Serra foi à Argentina. Tivemos a sensação de que o que está ocorrendo é só um aperitivo, e que o golpe iria se aprofundar numa extensão que a gente não podia nem imaginar”.

Luciana então telefonou para a filósofa Marcia Tiburi: “Decidimos nos movimentar. Sabemos que é muito difícil fazer alguma coisa contra esse processo golpista, mas alguma coisa a gente tem que fazer. Chamamos então uma reunião pequena de artistas para pensar em ações estratégicas, em coisas que a gente pode fazer para tentar barrar a sequência do golpe”, conta. A reunião na qual surgiu a ideia do espetáculo contou com cerca de 20 pessoas, entre as quais o cineasta Daniel Filho e a cantora Olívia Byington, as atrizes Bete Mendes e Cristina Pereira, os diretores teatrais Amir Haddad e Ernesto Picollo, os músicos Zélia Duncan e Edgard Scandurra e o jornalista Glenn Greenwald, entre outros.

No palco do Circo Voador, mais de 40 artistas fizeram o espetáculo, com a participação de coletivos como os Músicos Pela Democracia, o Teatro Pela Democracia, o Ocupa Minc e a Mídia Ninja, entre outros. Na linha de frente, um time de peso com Osmar Prado (no papel de Tio Sam), Antônio Pitanga (Mestre de Cerimônias), Benvindo Siqueira (Deputado Corrupto), Bete Mendes (Democracia) e Catarina Abdala (Vidente). Na parte musical, além de Abu e de Scandurra no comando da Banda Base, marcaram presença nomes como Chico César, Ednardo, Tico Santa Cruz, Flávio Renegado e Leoni, entre outros. A atriz Letícia Sabatella, caracterizada como a Mulher-Barbada, fez uma marcante performance ao dividir os vocais do clássico “Geni e o Zeppelin”, de Chico Buarque, em dueto com a transexual Blackyva.

Poesia

Formado inicialmente por militantes e simpatizantes dos movimentos sociais, da cultura e dos partidos de esquerda, o público foi engrossado pelas pessoas que decidiram ir ao Circo Voador após a terça-feira de trabalho. Quem foi viu momentos muito originais, como a versão do “Fora, Temer!” em ritmo de Fortuna Imperatrix Mundi, peça de abertura da obra clássica Carmina Burana. A plateia delirou quando o ator Gregório Duvivier entrou em cena caracterizado como o presidente interino Michel Temer. Muito engraçado ao simular a “falta de pescoço” de Temer, Gregório, que terminou sua participação sendo jogado em uma lata de lixo, leu um poema para o povo brasileiro:

“Ler-vos-ei um poema, depois sairei de fininho / Quem escreveu não fui eu, foi meu filho Michelzinho / Para o povo brasileiro, chamar-me-ão de morto-vivo / Alguns me chamarão mordomo, outros vice decorativo / Aos poucos aceitaram tudo aquilo que eu propunha / devo tudo nesta vida ao meu amigo Eduardo Cunha / Alçaram-me à Presidência para acabar com a Lava Jato / Vosso sangue, sugá-lo-ei; muito prazer: Nosferastu / Ó multidão barulhenta, eu vim aqui silenciá-la / Mulheres voltem pro lar, negros voltem pra senzala / Bandido bom é bandido que fala português correto / Matar-vos-ei pelas costas, foder-vos-ei pelo reto / Confessar-vos-ei meu nome, antes que eu vá embora / Meu segundo nome é Temer, mas meu primeiro nome é “Fora!”, recitou.

A luta continua

Nas rodas de conversa que se formaram após o espetáculo, os artistas e demais profissionais da cultura discutiam sobre os desdobramentos do movimento de resistência ao golpe: “Cada vez mais o golpe se consolida, se enraíza, fica arraigado dentro do nosso país. O golpe tem o apoio do mercado financeiro, da grande mídia, da plutocracia. Então, nós que somos pequenos entre aspas, nós que somos artistas, os trabalhadores do campo, a classe trabalhadora de uma forma geral, acho que é hora de a gente se unir. Juntos, nós somos maiores, os pequenos juntos são grandes. As minorias, na verdade, são maioria. Se juntarmos todos os oprimidos pelo golpe – negros, gays, mulheres, trans, artistas – seremos muito mais fortes que o golpe”, diz Gregório Duvivier.

Luciana Sérvulo da Cunha também prega a continuidade da luta no setor de cultura: “Nós estamos sendo massacrados. Eles estão vindo com tudo. Com a Dilma voltando ou não voltando, a luta continua. A luta é longa, é árdua, é dura, mas aqui nós temos uma trincheira da arte e dos artistas. A arte tem um grande poder de mobilização e de transformação. Eu acho que o papel dos artistas neste momento triste que a gente está vivendo no país é de resistência. Infelizmente, vai ser um pouco longa essa jornada, está havendo um desmonte de todas as conquistas que a gente teve, mas essa trincheira de luta e de resistência vai continuar através da arte, com muita garra, criatividade, cooperação, solidariedade e amor. Nós, artistas, temos que continuar lutando pelo mundo melhor em que a gente acredita”, diz.

A produtora e documentarista aposta no poder de mobilização da classe: “Mesmo neste momento em que está todo mundo muito triste, desanimado e sem esperança, a gente conseguiu reunir esse grande elenco. A ideia sempre foi fazer um espetáculo diferente de qualquer coisa que já tenha existido. Nunca foi ser só um show-comício, nem um pocket-show. De repente, quando a gente viu, estávamos com um musical na mão. A gente teve um ensaio ontem e fizemos o espetáculo hoje”, conta.

Além daqueles que fizeram parte do espetáculo realizado no Circo Voador, apoiam o projeto Canta a Democracia os artistas Amir Haddad, Arrigo Barnabé, Arícia Mess, Caroline Onikute, Cristina Pereira, Daniel Filho, Denise Dummont, Djalma Amaral, Eduardo Tornaghi, Edith Derdyk, Eliete Negreiros, Elisa Lucinda, Ernesto Neto, Fernando Morais, Gabriel Moura, Guilherme Kastrup, Leo Cavalcante, Mauro Refosco, Márcia Tiburi, Matthew Chapman, Natália Barros, Olívia Byington, Otto, Rosana Maris, Sérgio Mamberti, Sérgio Sérvulo da Cunha, Simone Soul, Taciana Barros, Tata Amaral, Teresa Cristina, Wagner Moura e Zélia Duncan.

Para Antônio Pitanga, o número de apoios ainda deverá crescer muito nos próximos dias: “Esse espetáculo de hoje aqui no Circo Voador foi o primeiro movimento de muitos que ainda virão. Agora, nós vamos para a luta, vamos para as praças. Todo o artista tem que ir aonde o povo está”, diz.

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