Aos jovens

Pepe Mujica, a política com passado e futuro, a vida como recomeço

Aos 85 anos, ex-presidente uruguaio renuncia ao mandato no Senado por razões de saúde, mas diz que manterá a atividade

Reprodução/Montagem RBA
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Ex-tupamaro, Mujica passou mais de uma década na prisão. Eleito presidente, não abandonou o Fusca azul e a cachorrinha Manuela

São Paulo – Fora do Senado, mas não da política, José Mujica apresentou nesta terça-feira (20) sua carta de renúncia (leia abaixo) e fechou uma era no Uruguai, 10 anos e meio depois de tomar posse como presidente pela primeira vez. Primeiro tupamaro eleito deputado, em 1994, depois de longo período como guerrilheiro preso (uma história contada no filme Uma Noite de 12 Anos, de 2018), fez a carreira política com discurso conciliatório. Tanto em fala de 1985, quando foi solto após 13 anos, como no dia de hoje, repetiu que não cultivou ódios.

“Pepe” Mujica, como passou a ser chamado, tornou-se conhecido também pela informalidade. Dispensa aparatos oficiais, gosta de andar com seu Fusca azul – chegou a receber proposta milionária pelo veículo – e cultiva simplicidade interiorana, morando em uma área rural de Montevidéu. Em 2018, quando também renunciou ao Senado (depois voltaria a ser eleito), declarou sentir muita falta de Manuela, sua cachorrinha, que havia morrido, aos 22 anos. O animal tinha apenas três patas, consequência de um atropelamento.

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Mujica faz seu último pronunciamento no Senado, dirigindo-se aos jovens, e é aplaudido pelos colegas de parlamento

Mujica: Os únicos derrotados são os que baixam a cabeça

Sem abandonar a política

Agora, aos 85 anos, completados em maio, a pandemia fez com que Mujica decidisse pela renúncia a um cargo que, como explicou, exige muito contato com a população. Além da idade, que já o deixa no grupo de risco, ele tem uma doença autoimune (Síndrome de Strauss).

Assim, como escreveu, a renúncia de Mujica se dá porque não é recomendável prosseguir nessas condições caso se dê valor ao milagre de viver. “Isto não significa o abandono da política, mas sim o abandono da linha de frente por entender que um bom dirigente é aquele que deixa pessoas que o superam com vantagem”, afirmou.

Em rápido pronunciamento no Senado, dirigiu-se aos jovens. Segundo ele, “triunfar na vida não é ganhar, é levantar cada vez que se cai”. Em entrevista publicada no livro Uma ovelha negra no poder, dos jornalistas Andrés Danza e Ernesto Tulbovitz, à véspera de ser eleito presidente, afirmou: “A vida é porvir, não é passado, o que não quer dizer que o passado não exista. O passado existe, mas o determinante é o futuro”. Na manhã de 30 de novembro de 2010, já eleito, comentou com sua companheira, Lucía: “Em que confusão nos metemos, velha!”.

Polêmicas e políticas sociais

Seu governo foi marcado por políticas sociais, combate à pobreza e medidas que causaram polêmica dentro e fora do Uruguai. Em 2012, por exemplo, foi aprovada a descriminalização do aborto, em votação apertada. No ano seguinte, veio a lei do casamento igualitário. Por fim, a regulamentação do uso da maconha – que, por sinal, Mujica jamais experimentou.

Em junho de 2018, Mujica foi visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que estava preso na Policia Federal em Curitiba. “Na realidade, a cabeça de Lula nunca poderá ser presa. Podem prender seu corpo, mas nunca seu coração”, afirmou aos militantes que faziam vigília nas proximidades.

Futebol, arte e VAR

O ex-presidente e agora ex-senador também mostrou visão de jogo ao falar de futebol em uma entrevista para O Estado de S. Paulo. Exaltou a proeza de se poder formar uma seleção em um país (Uruguai) de apenas 3 milhões de habitantes. “É um bairro de São Paulo. Um bairro”, ressaltou. Disse que o futebol era um esporte “maravilhoso”, por muitas vezes ser imprevisível, transformando-se assim em algo próximo da arte.

O repórter quis saber de Luis Suárez, o impetuoso atacante uruguaio que na Copa de 2014 mordeu o zagueiro italiano Chiellini. Mujica criticou o gesto, mas disse também achar errado uma punição posterior, com base em imagens de TV. “Nesse caso, teriam que descontar as faltas que acontecem e não se cobram (…) Eu creio que o que o juiz não marca, acabou. Ou trocamos os juízes por mecanismos que julgam de fora, pela imagem”, comentou, em tempos pré-VAR, o “árbitro eletrônico” que não consegue acabar com as controvérsias esportivas.

No final, ele voltou a Suárez: “A Luisito, nós o queremos como jogador genial. E como jogador genial, às vezes…”, diz Mujica, rindo muito e cobrindo o rosto com uma das mãos, para concluir: “Parece um moleque de bairro”.

Além de Mujica, outra renúncia

Foi um dia de despedidas no parlamento uruguaio. Presidente por dois mandatos, Julio María Sanguinetti, 84 anos, também renunciou. Ele lembrou que o gesto estava previsto desde 2019.

Leia a carta de renúncia:

Señora Presidente de la

Cámara de Senadores

Beatriz Argimón

Presente

De mi mayor consideración:

La función de Senador impone entre otras cosas una fuerte y una permanente relación directa con actores y colectivos sociales. Supone recibir a ciudadanos y visitarlos a veces en sus lugares de trabajo para recibir sus problemáticas y sus peripecias.

Para un anciano que además padece una enfermedad inmunológica estos tiempos de pandemia que duraran demasiado no son recomendables si se valora el milagro de vivir.

Esta situación me obliga con mucho pesar por mi honda vocación política a solicitar que gestione mi renuncia a la banca que me otorgó la ciudadanía.

Esto no significa el abandono de la política sino el abandono de la primera fila por entender que un buen dirigente es el que deja gente que lo supera con ventaja.

Me voy agradecido con hondos recuerdos y mucha nostalgia, me ha hechado la pandemia.

Saluda a Usted atentamente,

                                                                                                 José Mujica

https://www.youtube.com/watch?v=29M7CPE7SuI

Edição: Paulo Donizetti de Souza