Ele fugiu de casa e virou o rei do baião

Luiz Gonzaga, o Gonzagão, faria 100 anos em dezembro

(Foto de divulgação)

O início da trajetória que o coroaria rei do baião foi curioso. Apaixonado por uma moça de sua cidade – Exu, no sertão pernambucano –, ele tomou umas doses, apurou a valentia e ameaçou de morte o pai da donzela, que o chamou de “tocadorzinho”. No fim, ele não matou ninguém e levou uma “surra caprichada” dos próprios pais, seu Januário e dona Ana, conhecida como Santana. A surra doeu no corpo e na alma: o garoto, que ia fazer 18 anos, vendeu a sanfona, arribou de casa, alistou-se no Exército e ganhou o mundo. Foi ser artista no Rio de Janeiro. Dia 13 de dezembro, faria 100 anos. Morreu em 1989, aos 76.

Nomeado Luiz com z por ter nascido no Dia de Santa Luzia; Gonzaga por causa do sobrenome do são Luís; e Nascimento por vir ao mundo no mesmo mês que Jesus, ele era o segundo de nove filhos. O pai tinha a rotina dura da roça e era famoso na região – o Sertão do Araripe, na divisa do Ceará – por tocar e consertar sanfonas. Dona Santana vendia cordas de sisal na feira e era voz marcante nas novenas. Depois da surra e da fuga, Gonzaga voltou para casa já famoso, em meados dos anos 1940. Mas não escapou da bronca; afinal, tinha de respeitar Januário, com quem aprendeu os segredos da sanfona, e isso rendeu Respeita Januário, dele e do médico cearense Humberto Teixeira, parceiro constante, retratado no documentário O Homem Que Engarrafava Nuvens (2009), produzido pela filha, a atriz Denise Dumont – dessa dupla saíram sucessos como Assum Preto, Qui nem Jiló, No meu Pé de Serra, Asa Branca e Baião, compostas nos anos 1940 e 1950, época de ouro do baião.

O ritmo invadiu o país do samba-canção, mas perderia espaço na década seguinte, com o surgimento da bossa nova, até que os tropicalistas resgatassem Luiz Gonzaga. “Ele pôs o Nordeste no mapa da MPB. Não foi o pioneiro, porém o mais completo, consciente e talentoso promotor da música regional” – escreveu o crítico e pesquisador Tárik de Souza. “Antes dele, não há referência ao forró” – diz o jornalista Assis Ângelo, garimpeiro da cultura popular, com 150 mil itens em seu acervo. Ele enumera: desde 1941, Gonzaga gravou 625 músicas, em 125 discos de 78 RPM, 41 compactos de 33 e 45 RPM e outros quatro, de 12 polegadas. É o autor mais regravado da música brasileira. Assis Ângelo dá mais destaque a Luiz Gonzaga no panteão musical brasileiro do que a Tom Jobim. Argumenta: “Tom teve o jazz americano como fonte, Gonzaga buscou na própria terra”.

A vida brasileira se acha na obra de Gonzagão, a partir do Nordeste. A denúncia vinha em canções como Vozes da Seca, dele e de outro parceiro perene, Zé Dantas: “Seu doutô, os nordestino têm muita gratidão/ Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão/ Mas, doutô, uma esmola/ A um homem qui é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”. E alegria sobrava em pérolas como Lorota Boa: “Dei uma carreira num cabra qui mexeu c’a Maroquinha/ Começou na Mata Grande e acabou na Lagoinha/ Corri mais de sete légua, carregado como eu vinha/ Pois trazia na cabeça um balaio de galinha”. Homem da terra, Gonzagão eternizou o assassinato de seu primo, o boiadeiro Raimundo Jacó, em 1954. Além da composição A Morte do Vaqueiro, ajudou a criar a Missa do Vaqueiro, celebrada a partir de 1971.

De tocador de tango de Gardel a sanfoneiro do forró

Na zona portuária e de prostituição do Rio, ele começou tocando boleros, tangos, polcas, valsas. Era apaixonado por Carlos Gardel. Até que, provocado por um grupo de estudantes nordestinos que morava em uma pensão no Rio – entre eles o futuro ministro da ditadura Armando Falcão, aquele do “nada a declarar” –, começou a tocar música de sua terra.

A inspiração para usar uma indumentária regional veio do músico gaúcho Pedro Raimundo. “Ele foi o artista do século para o Brasil” – diz a cantora pernambucana Anastácia, a Rainha do Forró. Ela se recorda de Gonzagão como uma pessoa alegre, que fazia gracejos. “Às vezes se fechava no mundo dele, não sei se lembrava da pobreza que via. Sentia que ele ruminava aquilo, pensando se pudesse mudar.”

Anastácia lembra ainda uma temporada de três meses na qual ela e Dominguinhos, seu marido na época e uma das “crias” de Gonzaga, abriam as apresentações em circos e tea-tros. “Eu cuidava do dinheiro e várias vezes tinha de dar dinheiro a alguém porque ele falava que a pessoa estava precisando” – conta. Mas ele não ajudava alguém que bebesse – e Assis Ângelo observa que isso vem do trauma da surra que levou dos pais, ainda mocinho. Depois daquilo, nunca mais tomou bebida alcoólica. Gonzaga ajudava quem podia, não só com dinheiro. “Distribuiu mais de 200 sanfonas” – diz Assis Ângelo. “E morreu pobre.”

Vindo de São Bento do Una, no Agreste pernambucano, o cantor e compositor Alceu Valença lembra que cresceu ouvindo aboiadores, emboladores, cantadores de feira, sanfoneiros de oito baixos, enfim, convivendo com gente que ajudou Gonzagão a formatar seu estilo. Segundo Alceu, nota-se na origem da obra de Luiz Gonzaga a presença de gêneros como a polca, a valsa e a mazurca. “Seu estilo foi apurado a partir de diversas manifestações artísticas do Agreste e do Sertão”.

Alceu sabe que quando compõe um rock ou um blues, ele está dando a sua leitura para um estilo de música americano. “É como ir a um restaurante japonês. Mesmo que o sushiman seja cearense, ninguém diz que a comida é nordestina. Com música é a mesma coisa” – acrescenta ele, que lamenta quando um artista brasileiro troca a grandeza da nossa identidade cultural pela música de mercado. Essa reflexão, aliás, surgiu de um pedido feito a ele pelo próprio Gonzagão, para não deixar o “forrozinho” morrer.

“Outro dia, num aeroporto, um rapaz se aproximou e disse que era cantor e compositor. Ele disse: ‘Faço rap, porque parece com a embolada’. Daí eu indaguei: ‘Então, por que não faz logo embolada?’.” Alceu acha, com isso, que o Brasil precisa recuperar sua trilha sonora, “ser mais culto e menos cult” – diz ele que, em 1983, gravou com Gonzagão a música Plano Piloto, em homenagem a Brasília.

(Foto de divulgação)

Um baita filme

No final deste ano de centenário foi lançado o filme longa-metragem Gonzaga – de Pai pra Filho, de Breno Silveira, o mesmo diretor de Dois Filhos de Francisco (2005). Baseado no livro Gonzaguinha e Gonzagão – Uma História Brasileira, de Regina Echeverria, o filme mostra histórias de pai e filho, a relação muitas vezes conflituosa e o reencontro, inclusive musical, no final da vida.

Gonzaguinha nasceu em 1945. Não foi criado pelos pais. O pai artista tinha rotina de viajante e a mãe, Odaleia, contraiu tuberculose – morreu quando o menino ainda era pequeno. Os padrinhos, Dina e Xavier, ficaram com Luizinho, como ele era chamado. Diferentes fisicamente, no pensamento e na personalidade, Gonzagão e Gonzaguinha tiveram convivência difícil. Mas superaram barreiras e conseguiram se aproximar a ponto, inclusive, de fazer um show juntos, entre 1980 e 1981, A Vida do Viajante. O filho conheceu a dimensão da obra do pai, e o pai soube respeitar o trabalho do filho, que morreu em um acidente em 1991, menos de dois anos depois de Gonzagão. Eram artistas da estrada.

(Foto de divulgação)A terra e a guerra

No norte do Estado, a 618 quilômetros de Recife, Exu tem 32 mil habitantes, divididos de forma quase igual entre as áreas urbana e rural. Durante anos, conviveu com guerra entre as famílias Alencar, Sampaio e Saraiva. O exuense Luiz Gonzaga se esforçou para pacificar sua terra, apelando até para o governo federal. E ajudou a levar melhorias à cidade, que foi recebendo luz, energia, telefone e até uma agência do Banco do Brasil. “Tive de convencer o gerente de que ele não seria morto na primeira semana” – disse ele em depoimento para o livro de Regina Echeverria. Em Exu fica o Parque Aza Branca (com “z” mesmo) e o Museu Luiz Gonzaga, na sua antiga fazenda. A música mais conhecida do sanfoneiro era também a preferida dele, junto com A Triste Partida, do poeta Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré.

Universos que se tocam

Daniel Gonzaga, 37 anos, filho de Gonzaguinha, segue a linha musical iniciada por “seu” Januário há mais de um século – o pai falava da liberdade, do povo, do desejo de mudança. O avô, certo dia, feliz de vê-lo em cima de um cavalo, em Exu, foi buscar um chapéu e o chamou de boiadeiro. “São dois universos complementares: o urbano e o rural, o político e o ingênuo. São dois universos que se descobriram e se tocam no fim. Uma mistura fantástica.”

Gonzagão e Gonzaguinha, pessoas e artistas tão diferentes. Que lembranças eles trazem? Eles compõem seu xote relativo (título de uma canção de Daniel)?

A definição já é fator de limite. Como se traduz uma personalidade? Pela força de seus atos? Quais atos? Acho que trabalhar com arte e sobreviver, seja em 1950, 1980 ou 2012, é coisa de gênio. São pai e filho, né? Se anulam e se completam. Meu avô gostava do povo, meu pai também. Meu xote relativo vem, sim, disso tudo e de outros fatores que me colocam na mesma linha de frente, diferente e igual. Soma e divisão.

Que canções você acha que melhor representam Luiz Gonzaga e Luiz Gonzaga Jr.?

Acho que Asa Branca e O Que É o Que É representam um momento deles. E são emblemáticas de cada um.

Pelo que você acompanhou, pai e filho conseguiram uma reconciliação plena?

Sim. Meu avô no final da vida morava com meu pai, em Belo Horizonte. Meu pai ajudava nas festas de fim de ano em Exu e meu avô sabia muito mais da gente do que jamais soubera.

O filme recém-lançado é fiel à história?

Achei o filme bem fiel, sim. Minha reação foi bem doida, porque não dava pra saber se era filme ou a própria vida se desenrolando novamente. Uma emoção muito única.