‘Enem é porta de entrada para universidade, mas ainda não democratizou acesso’

Para especialista, briga partidária é principal motivo da relutância de instituições de ensino paulistas de usarem o exame no processo de seleção

São Paulo – O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se tornou uma das principais portas para estudantes entrarem na universidade, mas ainda não democratizou plenamente o acesso ao ensino superior. Essa é a opinião do coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, Daniel Cara, sobre o exame. 

Para o professor de Estatística Tufi Machado Soares, membro do conselho consultivo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), órgão responsável pelo Enem, o exame ainda não mudou o perfil das pessoas que acessam a universidade, mas passou a servir de referência para as escolas públicas, que, com o tempo, poderão garantir padrões mínimos de proficiência a seus alunos.

“Se o Enem democratizou o acesso ao ensino superior ainda é muito prematuro para saber”, avalia Cara. “O que ele já provocou é um efeito que um maior número de pessoas ou estudantes que saíram há muito tempo da escola e agora querem entrar no ensino superior, começam a observar o Enem como uma verdadeira porta de entrada. Nesse sentido ele é vitorioso.”

O caso de Maria Clara Oliveira pode evidenciar o que Cara diz.. Catadora de materiais recicláveis, ela deixou a escola quando estava na oitava série, no Espírito Santo, veio para São Paulo para procurar emprego e logo começou a trabalhar em um ferro-velho. Puxou carroça por alguns anos e hoje, com 35 anos, coleta materiais em sua combi. Há quatro anos, ela começou a frequentar aulas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), graduou-se e, agora, quer entrar no curso de Gestão Ambiental em alguma instituição federal.

A empregada doméstica Núbia Arantes parece que seguirá seu exemplo. Ela nasceu na Bahia e se mudou com os pais para São Paulo quando era criança. Completou os ensinos fundamental e médio no ensino público, mas não cogitava cursar o superior por falta de recursos. Núbia trabalha na residência de um casal de idosos há três anos, convivendo com os enfermeiros que atendem o dono da casa, diabético. Ela passou a admirar o ofício e, agora, com 21 anos, pensa em estudar Enfermagem e passa a se preparar para o Enem deste ano.

O exame passou a ser uma chance de recuperar o tempo perdido para qualquer brasileiro. Para Cara, o Enem terá, cada vez mais, a função de ser um grande vestibular nacional, “que abre para um sistema de todas as universidades federais e institutos de ensino superior, que dá a chance de locomoção pelo país”. Ele reforça que a prova tem um caráter de avaliação individual do desempenho do aluno.

“A divulgação do Enem por escolas [feita em 22 de novembro] foi um desastre, porque não tem qualidade amostral. O número de estudantes que prestam é livre, então nas escolas particulares você tem um estímulo para que os melhores alunos façam”, afirmou. “Aí você tem uma escola pública em que poucos alunos tiveram ânimo de prestar porque não acreditavam que se sairiam bem. Quem faz a prova não necessariamente reflete a realidade da escola. É um desastre: ajuda a elaborar rankings, privilegia o setor privado, cria uma falsa impressão de alta ou baixa qualidade.”

Tendo em vista que o Enem será cada vez mais uma prova de seleção, Cara acredita que a relutância de algumas universidades públicas paulistas em utilizar o exame nas suas avaliações diminua. “O dia que o governador de São Paulo for do mesmo partido do presidente da República todas as universidades do estado vão assumir o Enem como principal porta de entrada. No fundo a resistência ao Enem é política”.

Justiça

O professor Tufi Machado acredita que o ingresso pelo Enem “produz mais justiça” do que pelos vestibulares tradicionais. Ele é especialista em avaliações educacionais em larga escala e em Teoria da Resposta ao Item, conhecida como TRI, o método pelo qual se pontua no Enem e que causou polêmica desde 2009, por ser difícil de ser calculado pelos estudantes. Essa teoria difere da Teoria Clássica dos Testes, utilizada pela maioria dos vestibulares e que se resume na simples soma da quantidade de acertos comparada à soma dos acertos dos demais. “É muito melhor pelo Enem do que pelos vestibulares comuns, não só pelo fato de você ter uma prova nacional única, mas também por causa das formas em que as medidas são construídas, como os pontos são produzidos. Isso também tem a ver com o teste em si que é escolhido, que é melhor e mais padronizado”, afirma.

Tufi reconhece, entretanto, que os resultados garantidos pela TRI não são suficientes para a seleção de determinados cursos. “É evidente que o teste do Enem não é construído para separar uma pequena elite. Então alguns vestibulares mais concorridos ou especiais, que exigem habilidades especiais, de matemática ou biologia, selecionado alunos de proficiência muito mais alta que a média da população, precisam de uma segunda fase.” Segundo ele, é o caso de alguns cursos de medicina e engenharia no país.

Mas, se as medidas do Enem são mais justas, as pessoas que estão acessando o ensino superior por meio dele são menos favorecidas economicamente do que as que acessavam as instituições federais antes de 2009? “Este é um estudo que precisamos fazer”, comenta. É importante lembrar que à época do lançamento novo Enem, o então ministro da Educação, o novo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), disse que os estudantes que estavam preparados para o vestibular comum teriam, igualmente, bons resultados no Enem.Não esperava que o Enem mudasse drástica e imediatamente o perfil das pessoas que ingressam na universidade. Espero que isso aconteça com o tempo. Os cursinhos e as escolas privadas reagem muita mais rapidamente às modificações e às regras do que as escolas públicas”, diz.

O Enem, no entanto, mostra para a escola pública quais são os níveis de conhecimento que os estudantes têm de alcançar para terem acesso ao ensino superior, segundo Tufi. “O Enem está servindo de referência para a escola pública. Temos uma resposta mais clara e mais democrática para os alunos do ensino público. Antes não era muito claro. Havia uma dissociação entre o objetivo das escolas públicas e o objetivo dos cursinhos e escolas privadas, que têm a intenção de preparar os alunos para um teste de vestibular. Espero que com o tempo a escola pública se adapte e se prepare para garantir esses padrões mínimos de proficiência aos alunos. Esta é a nossa esperança.”