Debate critica avanço privado sobre a educação e defende escola pública

Expositores tentam reverter ideologia que considera as instituições privadas necessariamente melhores do que a rede pública. 'Devemos discutir o que é uma escola de qualidade', diz professor da USP

São Paulo – A “ascensão conservadora” em São Paulo e seus reflexos sobre as instituições de ensino paulistas foram tema de discussão realizada esta semana na Faculdade de Educação da USP. O debate, que acabou se transformando numa manifestação de defesa dos professores e da escola pública, dá prosseguimento à mesa redonda realizada semanas atrás na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas para discutir o pensamento da classe média paulistana, e que rodou a internet num vídeo com a professora e filósofa Marilena Chauí.

“Poderíamos ter uma certa satisfação, porque a educação hoje no Brasil é uma das poucas áreas sociais que realizou seu objetivo no que se refere ao ensino básico”, diz Lisete Arelaro, professora do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da USP. “Bem ou mal, 90% das crianças, jovens e adultos matriculados na educação básica brasileira estão numa escola pública. Isso já não é mais verdade para os demais direitos sociais, em que o processo de privatização foi mais intenso.”

A docente comemora a percepção de que o povo cada vez mais enxergue a educação não como um privilégio, mas como um direito de todos. Lisete anota, porém, que o país convive com um movimento internacional que advoga pela privatização do ensino em todos os níveis, e lembra que as universidades passaram a ser encaradas como um grande negócio nos últimos 20 anos. “É um fenômeno avassalador”, classifica. “Começou como estímulo à privatização no governo FHC e culminou com a entrada das transnacionais da educação através da Universidade Anhembi-Morumbi.”

Em 2006, a Anhembi-Morumbi foi comprada pela empresa norte-americana Laureate Internacional Universities, que congrega mais de 60 instituições em 29 países. “Hoje não estamos mais discutindo a qualidade do ensino superior privado, mas sim o valor de suas ações no mercado”, critica Lisete Arelaro, lembrando que esse mecanismo estritamente empresarial adotado pela educação universitária brasileira é o que permitiu à Anhanguera Educacional transformar-se numa companhia de capital aberto em 2003 e comprar 257 faculdades entre 2007 e 2010. “Não é uma discussão nem uma escolha qualquer.”

A professora da USP refletiu ainda sobre como a depreciação do ensino público no imaginário social brasileiro tem desestimulado a carreira docente e, ao mesmo tempo, facilitado a entrada dos chamados “sistemas de ensino” nas escolas da rede oficial. Segundo Lisete, a adoção de apostilas e materiais produzidos por grandes redes privadas (como COC, Objetivo e Anglo) intensificou-se após a municipalização da educação fundamental. “Muitas prefeituras não tinham condições de assumir a tarefa, e os sistemas de ensino apareceram como solução”, revela. “Nos últimos oito anos, 245 dos 645 municípios do estado de São Paulo compraram planos privados, substituindo as secretarias de educação.”

Ideologia privada

Esse é apenas um dos indícios que fazem o professor José Sérgio Fonseca de Carvalho acreditar que essa “natural” predileção dos paulistas pelas escolas privadas, em detrimento do sistema público, é uma construção ideológica. “Há uma disseminação generalizada e uma aceitação acrítica da ideia que desqualifica o público em favor da suposta maior eficácia do privado”, compara. “É uma ideologia porque se apresenta como verdade independentemente das nossas próprias experiências cotidianas, que são capazes de negar o público como sinônimo de fracasso.” Pese a todas as críticas, José Sérgio lembra que os melhores canais de tevê, meios de transporte e universidades em São Paulo, por exemplo, seguem sendo públicos.

De acordo com o docente, que leciona no Departamento de Filosofia e Ciência da Educação da USP, isso se deve a que temos o costume equivocado de comparar os piores representantes do ensino público, ou sua média geral, com as escolas privadas de elite. “São polos absolutamente desiguais”, sublinha. “Se pegarmos a nata das escolas públicas de São Paulo, ou levarmos em conta todo o sistema de colégios privados, que estão repletos de escolas de péssima qualidade, perceberíamos que a comparação não é desfavorável.” Como bom exemplo, José Sérgio cita o caso da Escola de Aplicação, vinculada à Faculdade de Educação da USP. “Aqui a coisa muda de figura.”

A discussão sobre o que é – ou deve ser – uma escola de qualidade também povoou a intervenção do professor. José Sérgio questionou o critério segundo o qual um sistema de ensino só é bom se consegue prover ao aluno condições de obter sucesso profissional. “Passamos a auferir qualidade à educação pública pelo seu impacto na vida privada e econômica do indivíduo”, contrapõe. “Aqui reside a perversidade da ideologia conservadora que se dissemina pela educação. A educação não deve se vincular apenas ao êxito econômico do aluno, mas à capacidade de propiciar-lhe acesso aos objetos da cultura, às linguagens da ciência, das artes e da literatura, às obras fundamentais.”

Se pensarmos assim, continua o docente, podemos inclusive inverter a lógica que atribui valor a algumas instituições enquanto deprecia o papel de outras. “Portanto, toda escola que homogeniza pela reprovação, pela seleção e pela classificação não teria qualidade, e aquela que convive com a pluralidade, inclusive com a pluralidade de desempenhos, seria uma escola de qualidade”, compara. José Sérgio insiste na ideia de que a educação não pode ser vista apenas como um instrumento para que o aluno se dê bem na vida.