Mão de obra barata

Alckmin estuda novo currículo que fragiliza ainda mais a formação no ensino médio

Pesquisa do próprio governo mostra que 80% dos alunos da rede estadual querem ir para a faculdade. Mas secretário Herman Voorwald defende formação para entrada imediata no mundo do trabalho

Programa Roda Viva/TV Cultura

Herman quer que alunos do ensino médio sejam preparados para o mundo do trabalho ao deixar a escola

São Paulo – O secretário estadual da Educação de São Paulo, Herman Voorwald, afirmou que o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) estuda um novo currículo para o ensino médio, no qual os estudantes possam optar por disciplinas profissionalizantes concomitantes ao ensino regular. Isso porque, segundo ele, apenas 17% dos estudantes da rede estadual paulista vão para a universidade. O anúncio foi feito em entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura, na última segunda-feira. A “reorganização” da rede, que vai fechar 94 escolas em todo o estado em sua primeira fase e é reprovada por 59% dos paulistanos segundo pesquisa do Datafolha, foi o tema do programa.

De acordo com Voorwald, a rede deve se preocupar mais com esses 83% do alunado. “Os meninos do ensino médio devem ter disciplinas eletivas que complementem a jornada, viabilizando informações importantes para inserção no mercado de trabalho; fugir um pouco desse sistema absolutamente tradicional cujo objetivo é o ingresso no mercado de trabalho, sendo que só uma porcentagem pequenininha está ingressando na universidade. Esses 83% têm o direito de agregar à sua formação informações que possam abrir portas.”

Essas disciplinas, segundo o secretário, deveriam compor a parte flexível do novo currículo do ensino médio atualmente em discussão em todo o país. Para ele, 60% dos componentes curriculares devem obedecer a uma base nacional comum, cabendo aos estados decidir sobre a composição dos 40%.

No entanto, a proposta do governo Alckmin conflita com os interesses dos alunos. Uma pesquisa da própria Secretaria da Educação mostra que 80% dos alunos querem cursar uma universidade após o ensino médio.

Aparentemente, a proposta é bem intencionada ao demonstrar preocupação com estudantes que precisam começar a trabalhar cedo, alguns dos quais vão entrar em faculdades particulares anos depois. No entanto, embute a filosofia dos ideais neoliberais de formação de mão de obra sob medida para os interesses do mercado, enfraquecendo a formação acadêmica e técnica-profissionalizante.

“Está claro que a ideia é preparar os filhos da classe trabalhadora para ser mão de obra barata, quando deveriam ter ensino de qualidade e igualdade de oportunidades”, disse o professor de Matemática Luciano Delgado, coordenador da subsede Guarulhos do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São Paulo (Apeoesp).

Professora titular de Fundamentos da Educação na PUC de São Paulo e pesquisadora dos efeitos da desigualdade social no acesso ao ensino superior brasileiro, Leda Rodrigues concorda e vai além: “Trata-se de uma saída fácil, cômoda. O governo deveria se preocupar com o ensino fundamental e médio de qualidade, para que os 83% restantes da fala do secretário tivessem condições de igualdade para disputar uma vaga na universidade ou mesmo no ensino técnico-profissionalizante de melhor qualidade, como o da rede federal, tão disputado quanto muitas universidades”.

De acordo com a professora Leda Rodrigues, as aulas de filosofia e sociologia, fundamentais para o desenvolvimento do pensamento crítico e intelectual, só passaram a ser obrigatórias no ensino médio estadual a partir de 2012, depois de muita luta desses professores. É muito provável que as mudanças em estudo no currículo atual, com foco no mundo do trabalho, venha a reduzir a carga horária dessas disciplinas, que são obrigatórias no ensino privado.

Esses 83%, segundo ela, já se “reprovam” bem antes porque sabem que o ensino fundamental estadual tem deficiências que são levadas para o ensino médio. Os que não abandonam a escola nessa etapa e conseguem entrar na faculdade, nem sempre vão concluir a graduação. Enfrentam dificuldades na permanência, por uma série de dificuldades, que acabam desestimulando e impedindo de seguir adiante. Eles desistem de tentar a universidade por se sentir incapaz de disputar uma vaga, principalmente nas universidades públicas.

A universidade, segundo ela, tem ainda um perfil muito acadêmico que pode não ser atrativo para esses estudantes, muitos dos quais não têm um capital cultural já que muitos pais pouco estudaram. Até mesmo cursos mais técnicos, como os da área de Engenharia e Biológicas, por exemplo, exigem essa bagagem cultural. “Na prática, querem entrar na faculdade para ter uma profissão, querem seguir mais para as áreas tecnológicas do que acadêmicas”, diz. “O problema é que na universidade devem se voltar não só para o fazer técnica, mas também para o pensar a técnica. Isso não quer dizer que não queiram fazer, mas expressa a dificuldade, a falta de informação é outro fator.”

Para Leda, a opção deve ser do aluno. “É o estudante que deve escolher entre os dois caminhos; poder optar entre uma universidade ótima ou curso profissionalizante igualmente ótimo. Assim como os estudantes das classes mais favorecidas, os das classes populares têm a mesma capacidade de aprender e se desenvolver”, diz, ressaltando que os 17% da fala do secretário são aqueles que estudam em boas escolas – nem todas as escolas estaduais são ruins.