Teatro

Peça ‘O Pão e a Pedra’ relembra greve dos metalúrgicos do ABC

Campanha salarial, enfrentamento da polícia, a situação feminina na fábrica e a importância histórica das lutas dos trabalhadores são alguns temas do espetáculo que fica em cartaz até 3 de julho no Tusp

Lenise Pinheiro/Divulgação

Sérgio de Carvalho: ‘A peça é sobre os trabalhadores, suas expectativas diante das lideranças e suas dificuldades’

As diversas dificuldades dos trabalhadores metalúrgicos nas greves no ABC paulista no final dos anos 1970 são o tema da peça O Pão e a Pedra, da Companhia do Latão, que fica em cartaz de quinta a domingo até 3 de julho no Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp). O espetáculo gira em torno do caso de uma mulher operária que se disfarça de homem para melhorar de vida, questionando a situação feminina num ambiente fabril e também traz à tona histórias de aprendizados políticos e de luta pela sobrevivência durante a greve de 1979.

Com direção, concepção e roteiro final de Sérgio de Carvalho, a encenação mistura elementos realistas, fantásticos e documentais. O texto resgata a prática política de uma greve histórica, cujas assembleias reuniam mais de 70 mil trabalhadores no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, com as expectativas ideológicas de três grupos envolvidos: o novo sindicalismo, a igreja progressista e o movimento estudantil de esquerda.

“As personagens são ficcionais, todas inventadas, apesar de a nossa Joana Paixão, a mulher que se traveste, ter seu nome inspirado numa operária real. De modo geral, as personagens correspondem a trajetórias que existiram: a do estudante que se integra à fábrica para politizar os peões, a do operário veterano, a do padre comunista. Mas Joana Paixão, que se torna João Batista para ganhar dinheiro, furar a greve e subir na escala produtiva, paga uma conta pessoal cara por essa decisão. Ela foi criada como uma metáfora, com licença poética porque, na verdade, não havia em 1979 tanta participação feminina nas linhas de montagem e assembleias, mas sua trajetória acabou por gerar uma das imagens mais atuais da peça”, declara o diretor.

Segundo Sérgio de Carvalho, o ponto de partida da pesquisa, formulado dois anos antes, em continuidade com outros trabalhos autorais da Companhia do Latão, era o das relações contraditórias entre imaginário ideológico e situação produtiva na experiência recente da vida no Brasil. “De início, pensávamos em fazer uma peça sobre a questão da religião hoje, seu vínculo com a política, seu crescimento no Brasil como força econômica e midiática, suas formas de mercantilização. Estudando um pouco a história da religião no país, me deparei com um movimento anterior diferente, quando setores da Igreja Católica lutaram contra a ditadura, defenderam os trabalhadores, especialmente pela atuação dos padres ligados à Teologia da Libertação, no início dos anos 1970. Acabei lendo textos sobre a proximidade dessa igreja crítica do capitalismo com o movimento sindical do ABC. Aí surgiu a ideia da peça”, afirma.

Sérgio decidiu se concentrar em 1979 porque a greve realizada neste ano apresentava questões que tinham relação com a atualidade. Além de terem consultado muitas teses e documentos da época, uma equipe de cinco colaboradores entrevistou pessoas que estavam no ABC em 1979, como Maria da Paixão, Augusto Portugal, Tin Urbinatti e intelectuais como Celso Frederico. “Era importante para nós, mais do que apresentar a história desse momento fundamental da luta social no país, entender a visão dos trabalhadores que lutavam por uma vida melhor e encontraram na greve (a partir do momento em que ela sofre uma intervenção federal) não apenas uma luta salarial, mas um aprendizado político. A peça é sobre os trabalhadores, sobre suas expectativas diante das lideranças e representações, sobre suas dificuldades em relação à própria vida saqueada. A greve surge em cena como visualização de uma chance de responsabilidade sobre o próprio tempo”, detalha Sérgio.

O Pão e a Pedra propõe ao espectador uma reflexão sobre a representação de organizações coletivas, sobre a força histórica dos trabalhadores, o tempo de trabalho dos operários, entre outros temas. “A peça apresenta muitas questões. Fala sobre a importância e a dificuldade de uma organização coletiva, e a necessidade de uma responsabilização geral sobre os processos, para além da esperança depositada num único homem, por melhor que ele seja. Ela mostra um momento em que os trabalhadores entenderam sua força histórica, sua capacidade de dizer não ao mundo do capital, de negar o tempo da fábrica, seus ritmos impostos, de se opor à lógica do lucro”, diz.

“É uma peça contra a vida saqueada, contra o fato de grande parte das pessoas não poder ser responsável pelo próprio tempo. Mas o importante é que ela não só fala sobre isso, ela mostra como imagem não é uma questão que está só no assunto, aparece na forma. As construções da cultura são necessariamente políticas, quer a gente queira ou não, goste ou não disso, surgem também como lutas, como embates. E a arte, como aspecto contraditório disso, está aí para nos lembrar que toda cultura também tem uma dimensão repressiva, autoritária, supõe ordenações do mundo: ela não é boa em si, depende do trabalho vivo das pessoas”, resume Sérgio de Carvalho.

A montagem é uma criação coletiva que tem direção musical e execução ao vivo de Lincoln Antonio e dez atores, entre os quais Helena Albergaria, Ney Piacentini, Rogério Bandeira.

O Pão e a Pedra
Quando: de quinta a sábado, às 19h30, e aos domingos, às 18h
Onde: Tusp
Rua Maria Antônia, 294, Vila Buarque, São Paulo
Quanto: R$ 10 e R$ 20
Capacidade: 98 lugares
Classificação: 18 anos

Ficha técnica
Dramaturgia e direção:
Sérgio de Carvalho
Elenco: Beatriz Bittencourt, Beto Matos, Érika Rocha, Helena Albergaria, João Filho, Ney Piacentini, Rogério Bandeira, Sol Faganello, Thiago França
Direção musical, composição e execução: Lincoln Antonio
Produção: João Pissarra
Assistência de produção: Olívia Tamie
Cenário e figurinos: Cassio Brasil
Iluminação: Melissa Guimarães e Silviane Ticher
Cenotécnico: Valdeniro Pais
Dramaturgo assistente: Julian Boal
Colaboração na dramaturgia: Helena Albergaria
Registro videográfico: Natalia Belasalma
Assistência de direção: Maria Lívia Nobre
Equipe de pesquisa: Julian Boal, Marcelo Berg, Maria Lívia Nobre, Natália Belasalma, Olívia Tamie, Sérgio de Carvalho
Fotografias do cartaz: Cristiano Mascaro
Arte do programa e cartaz: Marcelo Berg