O olhar do outro

Eduardo Coutinho, autor que deu voz aos personagens do cotidiano, vira personagem

Documentário sobre o principal documentarista brasileiro, que morreu cinco anos atrás, revela pensamento sobre sua obra

Reprodução
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O filme pode ser mágico, mas a realidade não é, diz o autor de 'Edifício Master' e 'Cabra Marcado para Morrer'

São Paulo – “Eu faço uns filmes aí e fumo”, diz a certa altura Eduardo Coutinho em seu depoimento a Josafá Veloso para o documentário exibido na edição deste ano da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e que deverá chegar ao circuito comercial no início de 2020, além do canal Curta!. Conhecido por fazer as pessoas falarem, Coutinho não queria falar – começa a conversa mal-humorado, querendo saber quanto tempo vai demorar e qual a finalidade. “É um filme, não é uma tese?”, pergunta. Aos poucos, parece ficar mais à vontade. Volta e meia, esboça um sorriso e chega a cantarolar uma antiga canção, usada em um filme (Ternura, de Roberto Carlos, sucesso de Wanderléa).

Seus filmes são pró-vida, afirma Coutinho, que antes de ser celebrizado como documentarista dirigiu longas e trabalhou no programa Globo Repórter, nos anos 1970. Ao mesmo tempo, ele diz odiar celebrações de alegria, como o carnaval. Para ele, vida é dor. Admirado pelo que consegue extrair de personagens anônimos, o cineasta considera utópico o “colocar-se no lugar do outro”. Cita o sociólogo francês Pierre Bourdieu, autor de A Miséria do Mundo: a entrevista seria um “exercício espiritual”, com o olhar sobre o outro, do outro. Utopia, insiste.

O filme pode ser mágico, mas a realidade não é. Para Coutinho, ao filmar ele “usurpa” a rotina dos entrevistados. Nesse sentido, o documentário tem alguma coisa de ficcional, ainda que trate de fatos reais.

Durante toda a conversa com Josafá, que com Banquete Coutinho faz sua estreia no cinema, Eduardo Coutinho fumou. Em filmagens antigas exibidas durante os 74 minutos de documentário – que abriu o Festival Internacional de Curitiba e foi exibido no Doclisboa, em Portugal –, ele também aparece com cigarro na mão. Tinha 78 anos quando foi entrevistado e contou ter enfisema há mais de 20. Fuma, diz, mais pelo gesto do que pelo cigarro – não teria graça se fosse no escuro. Mas se pergunta: parar agora por quê? Ele só viveria mais dois anos: morreu de forma trágica, em 2 de fevereiro de 2014, assassinado a facadas pelo próprio filho, após um surto.

A entrevista de Josafá com Coutinho – feita em 2012, dois anos depois de se conhecerem – conduz a narrativa, com ritmo que lembra documentários do autor retratado. Ao longo do filme, são exibidos trechos de várias obras, incluindo o primeiro longa, ABC do Amor, de 1967. Estão ali, por exemplo, Santo Forte, Edifício Master, Peões, Jogo de Cena e, claro, Cabra Marcado para Morrer, que o cineasta iniciou em 1964,  mas só pôde concluir 20 anos depois, por causa do golpe. A história do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado em 1962 pelo latifúndio, é retomada depois que Coutinho localiza a viúva, Elizabeth Teixeira. Ela se vê nas filmagens antigas. A história se reconta. Coutinho conta que, muito antes de Cabra, se interessou pelo pensador alemão Walter Benjamin – não pelo marxismo, diz, mas pela melancolia.

Também aparecem cenas de bastidores, durante a produção de vários de seus filmes, em que ele aparece interagindo com personagens. Diretor estreante e músico, Josafá compôs a – adequada – trilha sonora de seu documentário, durante o qual afirma em off: Eduardo Coutinho fez sempre o mesmo filme, mas sempre diferente. “Eu só existo pelo olhar do outro”, diz o cineasta.