Um velho chamado João

Novo trabalho da cantora Rhaissa Bittar provoca e estimula ‘tirar as máscaras’

Artista acaba de lançar seu terceiro álbum, uma viagem interior para se libertar das múltiplas personas que habitam seu corpo

Rodolfo Magalhães/Divulgação
Rodolfo Magalhães/Divulgação
Rhaissa Bittar: “O artista se dá esse tempo de pensar sobre a vida, sobre si, e coloca isso em música, o que faz com que outras pessoas também pensem sobre esses assuntos. No fundo, o João é o velho que existe em mim"

São Paulo — Ela é uma mulher que assume suas “máscaras”, representações diversas para diferentes momentos da vida cotidiana. Pode haver uma para aquele encontro romântico, outra para a reunião em família, outra para um encontro de trabalho, e mais outra para um jantar entre amigos, e outra, e outras. Disposta a se livrar das múltiplas máscaras, Rhaissa Bittar decidiu mergulhar fundo em seu próprio eu. E lá encontrou um homem velho e rabugento. Um homem chamado João.

“Descobri esse cara, o João, um homem velho, com suas rabugices. E um jeito de tirar ele, tirar essa máscara, de me entender melhor, foi fazer esse disco”, explica a cantora, durante participação no programa Hora do Rango. “Só quem tem paciência pra ouvir história de homem velho, vai ouvir esse disco. E cada um tem um velho dentro de si.”

O álbum, batizado justamente de João, é o terceiro na carreira da cantora. Oriunda do teatro, seu lado atriz e a característica de interpretar personagens, outras personas, facilitou a imersão interior. Nascida em Santos e criada em São Paulo, Rhaissa teve estímulos musicais e teatrais desde nova. Uma das lembranças mais fortes é a de cantar com um microfone de brinquedo de cor roja, quando era bem pequena. “Eu viajava com aquele reverbe”, relembra, entre risos. 

Aos 18 anos, foi fazer intercâmbio em Taiwan. Na escola no outro lado do mundo, teve aulas de dança chinesa, de teatro e percussão tradicional. O primeiro álbum, Voilá, tem três músicas cantadas em chinês. No segundo disco, Matéria estelar, cada música é um objeto contando a sua história. “Foi mais um álbum em que fiz essa viagem com o teatro. O show virou um espetáculo, me transformei numa boneca que contava a história dos outros objetos. E no fundo era tudo pra falar do ser humano”, afirma Rhaissa.

Lançado em junho, o novo álbum tem 10 faixas, compostas por diferentes autores. Estão nele Jorge da Capadócia, clássico de Jorge Ben Jor, agora numa versão com leveza quase oriental, Pra acordar, de Suely Mesquita e Paulo Monarco, e músicas de Mauricio Pereira (Um dia útil), Vitor Ramil (Livro aberto), Isabela Moraes (Made in produto), Paulo César Pinheiro (Alento), Arthur de Faria e Daniel Galera (Você tá bem?), além de A maior ambição (Zé Manoel/Juliano Holanda), Velhas sílabas (Filipe Trielli) e Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (Siba).

Rhaissa explica que o repertório do álbum foi escolhido por meio da pesquisa com o personagem João. “Era um jeito de falar de um ser humano que passava por questões humanas, de se questionar, fazer um balanço da vida, as frustrações, os amores, a fé.” A canção Jorge da Capadócia, por exemplo, foi a maneira encontrada pela artista para abordar a temática da fé. “Fui escolhendo músicas que mexiam comigo e com o João que existe dentro de mim.”

No clipe de Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar, ela canta com uma “cabeça” de nuvem, mais um elemento trazido do teatro e usado para construir a narrativa da história. “É uma dessas máscaras com que brinquei para falar sobre introspecção, sobre se olhar, se enxergar, e essa é a mais louca do álbum, dá vontade de dar passos e fazer o mundo mudar de lugar”, explica. E logo acrescenta: “O artista se dá esse tempo de pensar sobre a vida, sobre si, sobre relacionamentos, e coloca isso em música, o que faz com que outras pessoas também pensem sobre esses assuntos. No fundo, o João é o velho que existe em mim, são as minhas frustrações, as minhas rabugices, tudo eu mesmo. Olha que louca sou!”.

Quando foi que o nosso amor
Se transformou num par
Das velhas sílabas?
Quando que o sentido
Se desgovernou
Deixou a nossa vida assim
Sem mais?
Mas como vou falar da vida
Se os poetas, os floristas
Astronautas, beletristas
Oucos, sadomasoquistas
Tanta gente mais inteligente do que eu
Não conseguiu falar

Trecho da música Velhas Sílabas, do álbum João

Cultura como alvo

As transformações políticas pelas quais passa o Brasil não deixam incólume o setor artístico. Pelo contrário. A música, o cinema, o teatro e as artes em geral têm sido atacadas sistematicamente pelo discurso crescente da extrema-direita no país, impulsionado pelas falas do próprio presidente Jair Bolsonaro (PSL). 

Rhaissa disse que sente os colegas artistas desanimados com o atual cenário político e o rumo que o país tem tomado. “De alguma forma a gente se fortalece e se inspira uns com os outros, com o que a gente faz e segue fazendo”, explica. E até brinca ao dizer que o jargão do momento é falar: “Ainda mais nos tempos atuais…”; “Ainda mais agora…”; “Ainda mais com o que a gente está passando.”

Ela lembra que na época da divulgação do segundo álbum, fez muitos shows gratuitos num roteiro cultural da prefeitura de São Paulo, e agora não sabe mais como está esse circuito. Ainda com o segundo disco, fez turnê na China, em 2015, graças ao apoio de um programa do governo federal que levava artistas para o exterior. Também diz não ter mais informação se tal programa ainda existe.

A opinião é compartilhada pelo violonista Thiago Roover, que acompanha Rhaissa na turnê do álbum João.“Não tem mais a facilidade de vender o show pra prefeitura, então onde é o nosso palco? É a rua? Então vamos fazer show na rua”, afirma, e cita o festival Rock in Rua, organizado por ele e outras bandas em Campinas, em 2018.

Ele é da opinião de que o artista deve se posicionar. Em seu primeiro álbum solo, Aurora Boreal, lançado recentemente, compôs uma música sobre a situação do país, “Xau querida (democracia)”. “Nesses tempos de crise, a gente começa a refletir sobre tudo e tomar posse do que seria a nossa palavra em relação a isso”, explica Thiago Roover. “Foi a nossa forma de colocar o nosso ponto de vista em relação a isso. Quem saiu perdendo foi a democracia, fomos nós, foi tudo aquilo que a gente construiu de 64 pra cá. Precisamos ser mais unidos para que isso tenha um final feliz. A gente está vendo que a casa está caindo e, se a gente não fizer nada, vai cair junto com ela.”

Rhaissa avalia que a polarização do país faz com que as pessoas fechem os ouvidos na hora de dialogar. Entre as famílias, ela acredita que as desavenças políticas estão sendo o estopim até mesmo para trazer à tona problemas pessoais. “Nas famílias, acaba até fugindo da política mesmo, de quais rumos vamos tomar, o que vamos fazer, e acaba se tornando um motivo para descarregar frustrações pessoais, ou questões pessoais entre as pessoas.” 

Entre uma máscara e outra que era despida, a dupla apresentou no programa três canções ao vivo do novo álbum: Velhas sílabas, Pra acordar e Um dia útil. A última, Rhaissa Bittar define como um mantra da profissão. O estímulo para seguir em frente, custe o que custar. “Toda vez em que desanimo ou me sinto perdida, como às vezes a gente se sente na vida, ouço essa música e ela me dá um norte, é um dia útil.”