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‘Eu acho que a esperança não morre’, diz Elza Soares sobre os retrocessos no Brasil

A vida vai te dando impulso e na frente você vai vendo o que é de verdade e o que não é de verdade”, disse a artista, em entrevista coletiva antes de show em Porto Alegre

Fernanda Canofre/Sul21

Elza Soares é sinônimo de resistência desde que se entende por gente

Sul21 – Quando o espetáculo do disco “A mulher do fim do mundo” está chegando na metade, Elza Soares avisa: “Agora é assunto serésimo, mulheres, prestem atenção! É muito sério, serééésimo!”, diz esticando o sotaque carioca. A próxima música é “Maria da Vila Matilde”, composição de Douglas Germano, que virou hino da violência contra a mulher desde que foi lançada, em outubro do ano passado. Sob uma luz vermelha, no alto do trono colocado em cima de sete degraus para ela no meio do cenário, Elza levanta o indicador a todo tempo entoando os versos: “Cê vai se arrepender de levantar / A mão pra mim”.

A música entoada do início ao fim pelo público, indicada ao Grammy Latino na categoria de melhor canção em português, virou o catalisador do disco e da turnê virada ao feminismo e a lado político do que é ser mulher e negra no Brasil. Na plateia, mulheres – a maioria delas jovens – acompanham a música com o punho erguido. Quando os músicos seguem ao fundo, Elza fecha o manifesto: “Mulheres: 180 e chega de apanhar calada. Tem que gritar, gritar! Chega. ‘Foi a uca que me fez fazer isso’. Foi a uca nada, é safado. Não tem perdão, é 180. Tem perdão?”. “Não!”, respondem as vozes femininas da plateia.

Em uma entrevista coletiva relâmpago, concedida pouco mais de uma hora antes do show no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, na quinta-feira (3), Elza reforçou a crença em sua arte: “A música tem um poder de transformação sim, tem um poder forte”. Seu último disco talvez seja a lição mais próxima a isso que chegou. Ela se emociona ao lembrar de um show em Belo Horizonte, Minas Gerais, logo início da turnê, em que meninas que trabalhavam com mulheres em situação de vulnerabilidade levaram uma faixa grande pedindo que ela falasse sobre elas.

Mesmo sem gostar de falar de política, Elza Soares que votou em Dilma Rousseff (PT) por ela ser mulher e porque já estava na hora de uma mulher ser presidente, ainda cansa de falar sobre o que é viver como mulher no Brasil de 2016. “Vou dizer a você que não tenho nem palavras para dizer o que sinto, o que trago agora. É difícil, é muito difícil. Mas vamos levando. A vida vai te dando impulso e na frente você vai vendo o que é de verdade e o que não é de verdade”, disse ao Sul21.

A vida de Elza nunca esteve para brincadeira. Dos seis filhos que teve, perdeu cinco. O último deles morreu em julho do ano passado, poucos meses antes de “A mulher do fim do mundo” ser lançado. Ficou viúva e sem dinheiro com apenas 21 anos. Quando Garrincha se separou da esposa para ficar com ela, teve de aguentar a casa atingida por tomates e ovos podres e gente que a chamava de “bruxa”. Quando a ditadura militar enrijeceu a censura, teve outra casa sua, a que dividia com Mané e os filhos, metralhada pelos militares – o que obrigou a família a sair do país. Perdeu a mãe em um acidente de carro causado pelo marido que dirigia embriagado. Com a voz rouca que virou sua marca registrada, Elza Soares é sinônimo de resistência desde que se entende por gente.

“O fim do mundo não é um lugar só, nem um tempo só”

A pergunta que Elza mais ouve com o novo disco é: “quem são as mulheres do fim do mundo?”. Para a revista Rolling Stone, ela respondeu que “é aquela que tem alma”. Para o grupo de jornalistas que a entrevistaram do lado de fora do camarim na UFRGS disse: “Para mim são todas as mulheres, que tem dignidade, que pensam, são todas essas as mulheres do fim do mundo”.

O fim do mundo do disco dirigido pelo baterista Guilherme Kastrup, que também assina o show, não tem data definida. “Esse fim do mundo não é o apocalipse, ao mesmo tempo em que é, mas é também uma situação que a gente já vive, ele é situações que a gente já viveu. E o fim do mundo não é necessariamente uma data, é uma coisa simbólica. Ele pode ser um lugar distante, o colapso de um sistema. Então, um retorno que as pessoas dão, relativo a um tempo que elas não sabem dizer qual é, é porque o fim do mundo desse disco não é um lugar só, nem um tempo só”, explica a cenógrafa Ana Turra, responsável pelo cenário, luzes e vídeos do show.

Junto com a biografia de Elza Soares foi esse fim do mundo o ponto de partida para a criação do palco. “A gente queria colocar ela em um lugar de soberania, como alguém que já viu muito, já viveu muito, tem muito para transmitir e para receber também”, diz a cenógrafa que entrou no projeto a convite do diretor Guilherme Kastrup.

O cenário do show coloca todos os músicos em volta do trono de Elza. Ela se apresenta sentada – os problemas na coluna operada ainda dificultam seus movimentos – com uma saia criada com sacos de lixo que se estende até a plateia. Ao fundo, uma pirâmide invertida de sacos de lixo pretos, se transforma junto com as projeções em vídeo em ouro, prata, carne. Conforme as luzes, que Ana Turra controla de sua mesa.

“É uma pessoa que tem uma carreira inigualável, uma vida muito simbólica para o nosso país. A gente queria muito colocá-la no palco carregando significado: nada muito fechado, mas algo que cada pessoa enxergasse de um jeito. Então, o retorno que eu tenho do público é bem interessante. Tem pessoas que falam que ela é uma rainha, tem pessoas que falam que o cenário lembra teias, outras falam que lembra coração, a Medusa”, complementa Ana. Para muitas pessoas a saia e seus “tentáculos” também são as raízes de uma árvore, onde o tronco se abre na frondosa cabeleira roxa que Elza usa agora.

A uma pergunta sobre a situação política atual e o movimento conservador que ganha força no país, ainda na coletiva de imprensa, ela responde: “Eu sempre tenho esperança. Eu acho que a esperança não morre, ela é viva. Já pensou se eu pensasse o contrário? O que seria de mim?”.