Entrevista

Whitaker: ‘Sem governos comprometidos, Plano Diretor não serve para nada’

Para o urbanista e ex-secretário de Habitação de São Paulo, revisões do projeto serão marcadas por pressões do mercado imobiliário

Paulo Pinto/Fotos Públicas
Paulo Pinto/Fotos Públicas
Em São Paulo, por exemplo, medidas de isolamento social foram abandonadas pelo governador João Doria (PSDB)

Brasil de Fato – O Plano Diretor da cidade de São Paulo será revisado em 2021, com novas análises sobre políticas e metas. Em jogo, um conjunto de interesses de diversos setores da sociedade, especialmente do setor imobiliário. 

Aprovado em junho de 2014, durante a gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), o Plano Diretor tem previsão para ser executado até 2028 e previa, desde o início de sua vigência, a revisão deste ano. 

Para João Sette Whitaker, urbanista e ex-secretário de Habitação da gestão petista, a discussão em torno do projeto pode ser infrutífera.

“Existe uma enorme expectativa de urbanistas em se fazer Plano Diretor. É maravilhoso, mas tem que ter um ciclo de governos comprometidos. Se não for assim, não serve para nada”, afirma Whitaker, que lamenta o “abandono” do Plano Diretor pelos governo tucanos de João Doria e Bruno Covas.

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“O Plano Diretor de 2014 começou a ser implementado em 2015 e 2016, mas quando acabou a gestão do Fernando Haddad (PT),  foi deixado às moscas por conta do enorme papel de influência que o setor imobiliário teve nas gestões de Doria e Covas”, avalia o urbanista.

Ainda de acordo com Whitaker, as discussões sobre a revisão do projeto serão protagonizadas pelo mercado, interessado em manter a expansão de empreendimentos imobiliários no município.

O urbanista lamenta, no entanto, que esse debate passe despercebido para a população. “Ninguém nem sabe o que é um Plano Diretor. Ninguém nem sabe qual a diferença de uma boa ou má gestão.”

Confira a entrevista na íntegra

Neste ano, a cidade de São Paulo vai rediscutir o Plano Diretor. Quais aspectos o senhor considera que não devem ser mexidos e quais precisam de modificações, pois sua aplicação não se confirmou correta?

Minha opinião é que não podemos discutir em nenhum desses planos, nem o anterior e nem esse, se houve acertos ou erros. Na verdade, eles nem foram integralmente implantados. É difícil falarmos se uma previsão deu certo ou errado.

No Brasil, Plano Diretor é algo que fica a critério da vontade política de quem está no poder. Ninguém será perseguido porque não aplicou a lei do Plano Diretor. Ou melhor, ninguém de direita. 

Quem faz Plano Diretor é a esquerda. Aqui em São Paulo é típico: somente governos de esquerda fizeram o Plano Diretor. O interessante é que quando você tem partidos progressistas na prefeitura, o Ministério Público cobra, não deixa ficar um minuto sem aplicá-lo. Agora, quando o mainstream da política brasileira entra na prefeitura, ninguém fala nada.

Na gestão [de Gilberto] Kassab, por oito anos se engavetou o Plano Diretor, que é uma lei. Agora, no Plano Diretor de 2014, há a mesma coisa acontecendo.

O Plano Diretor 2014 começou a ser implementado em 2015 e 2016, mas, quando a gestão do Fernando Haddad (PT) acabou, ele foi deixado às moscas por conta do enorme papel de influência que o setor imobiliário teve nas gestões de Doria e Covas.

O setor imobiliário passou a ter assento direto na Secretaria Municipal de Habitação e na Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Em São Paulo, o aplicativo usado para fazer a aprovação dos empreendimentos imobiliários, por exemplo, foi doado pelo próprio setor imobiliário.

O senhor acredita que o setor imobiliário será protagonista nessa discussão, por conta de sua proximidade com o prefeito Bruno Covas?

Desde 2016, há uma paralisação dos elementos mais importantes do Plano Diretor. Quer dizer, uns paralisaram, outros foram desmontados. Os desmontes foram todos ligados à atuação do mercado imobiliário. Nem todos os retrocessos foram possíveis porque a Câmara atuou bem.

Tentaram alterar o [controle de construções verticalizadas no] miolo do bairro, por exemplo. Bairros como Pompeia e Vila Madalena, em que se faz qualquer coisa, começaram a surgir empreendimentos verticalizados, prédios altos, no meio do bairro, sem qualquer controle.

O Plano Diretor regulamentou isso e disse que só pode crescer e adensar ao longo dos eixos estruturantes ou nos 600 metros próximos ao metrô. Isso faz todo o sentido, porque é onde você tem transporte público de massa. Isso democratiza a cidade, ao permitir que haja uma concentração maior de pessoas.

Estamos aprendendo, de novo, que Plano Diretor não é uma varinha mágica

No miolo dos bairros, se limitou [essa possibilidade]. Com o Plano Direitor, se permitia que o miolo da Pompeia e Vila Madalena, que estavam sendo desconfigurados pelo mercado, tivessem alguma regulamentação. Quando o PT perdeu a eleição, o mercado imobiliário partiu para cima e está acabando com isso.

Quais avanços o Plano Diretor de 2014 previa e não foram alcançados?

O Plano Direitor de 2014 criou eixos de urbanização estruturantes que vão muito além do centro expandido, que chegam na Zona Leste, no Jardim Damasceno, na Brasilândia, entre outros.

Esses eixos permitem um adensamento maior e a construção de prédios para poder alavancar a atividade econômica ao longo desses eixos e equilibrar essa pendularidade.

O Plano Diretor só permite que se construa empreendimentos mais altos e densos, ao longo desses corredores, se houver um corredor de ônibus. Então, com o tempo, há um reequilíbrio na movimentação das pessoas e com uma farta oferta de transporte.

Porém, os números da atual gestão são ridículos. Enquanto não houver corredores de ônibus, não haverá mudança estrutural, que é das mais importantes para se democratizar a cidade.

Estamos aprendendo, de novo, que Plano Diretor não é uma varinha mágica. Existe uma enorme expectativa de urbanistas em se fazer Plano Diretor. É maravilhoso, mas tem que ter um ciclo de governos comprometidos. Se não for assim, não serve para nada.

Um Plano Diretor pode ser transformador ou um instrumento de devastação, depende de quem vai tocar. Quando você está no governo, você faz política pensando em 16 anos, mas sabe que depende de outros governos.

A Prefeitura de São Paulo utilizou 15% dos recursos do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) para “circulação de pedestres”. Em anos anteriores, 100% do valor era empreendido em “transporte público coletivo”. Esse deslocamento de recurso beneficia quem?

O Fundurb é uma maneira de você taxar o setor imobiliário, que faz empreendimentos de maneira ultraliberal na cidade.

Muito do que é aplicado em transporte, poderia ser aplicado na construção de corredores de ônibus, mas não é feito. A opção é outro tipo de investimento, que não é um sistema de ciclofaixas. E é complicado quando se fala em promover a circulação de pedestres.

As grandes obras dessa gestão foram na Vila Madalena. É importante manter o calçamento da Vila Madalena? É. Mas é importante você olhar as condições dos pedestres no M’Boi Mirim e de Itapecerica da Serra. São opções políticas.

Uma coisa que me espanta muito no Brasil é essa absoluta falta de critério, absoluta cegueira e ingenuidade da população esclarecida, que insiste no discurso que você está radicalizando quando se começa a aprofundar as políticas públicas.

Isso é parte do mal que fez o [Sérgio] Moro, que tornou pejorativa a palavra ‘política’. Com isso, você vai reelegendo essas figuras.

A eleição passada em São Paulo foi um absurdo. Ganhou um governo que não fez absolutamente nada.

Em 2016, o Doria ganhou em cima dos votos brancos, em um ano de demonização do PT. Em 2020, ninguém analisou o governo. Foi espantoso. É terrível. Ninguém nem sabe o que é um Plano Diretor, ninguém nem sabe qual a diferença de uma boa ou má gestão.

Em seu último relatório anual, publicado em 2020, a Prefeitura de São Paulo afirma que uma das prioridades para a revisão do PDE em 2021, é “fazer ajustes necessários para que o mercado imobiliário possa produzir empreendimentos”. O senhor acredita que, sob Covas, haverá uma pressão do poder público para destinar fatias maiores ao mercado imobiliário?

Isso estar escrito seria motivo de ação de improbidade. É inacreditável, mesmo com uma lei discutida e votada na Câmara, que o governo diga quem será favorecido.

O governo fala que fará a revisão para melhorar o que nunca cumprimos. Essa revisão é para favorecer o setor que quer desmontar a regulação urbana. Evidente que o que marcará a revisão do Plano Diretor é a pressão do mercado imobiliário.