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TJ abre processo contra desembargadora por soltar presos que já cumpriram penas

Em seu voto, o relator, desembargador Xavier de Aquino, afirma que Kenarik terá amplo direito a defesa. Instituições pró-direitos humanos repudiam abertura do processo

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A juíza Kenarik Boujikian é conhecida por sua atuação na defesa dos direitos humanos

São Paulo – O Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu hoje (9) abrir um processo administrativo disciplinar contra a juíza Kenarik Boujikian por expedir alvarás de soltura para dez réus que estavam presos preventivamente há mais tempo do que a pena estabelecida na sentença, seguindo os princípios jurídicos brasileiros. A decisão foi tomada por desembargadores do Órgão Especial, por 15 votos a 9.

Haverá agora uma apuração para verificar se houve, de fato, descumprimento do princípio da colegialidade ao Kenarik expedir alvarás sem consultar o colegiado. A magistrada foi acusada de “usurpar a competência do juízo” com sua decisão. Os alvarás de soltura foram concedidos por ela na condição de relatora dos processos, sem que a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça analisasse os casos.

Em seu voto, o relator do processo, desembargador Xavier de Aquino, afirma que Kenarik terá amplo direito a defesa e que o processo dá “todas as oportunidades para a magistrada se manifestar, sendo certo que se sua explicação for a contento, ao final, se chegará a uma conclusão absolutória”.

Kenarik – conhecida por sua atuação na defesa dos direitos humanos e por ser uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD) – foi processada em agosto de 2015 por um de seus colegas, Amaro José Thomé Filho. O desembargador entrou com uma representação na Corregedoria do TJ-SP acusando a magistrada de “violação do princípio da colegialidade”. Com a abertura do procedimento disciplinar, a desembargadora está sujeita a uma sentença com punições que vão de advertência a aposentadoria compulsória.

A trajetória de Kenarik é marcada pela defesa dos direitos humanos. Em novembro de 2013, por exemplo, quando o juiz Bruno Ribeiro, que coordenava as detenções dos réus do chamado mensalão foi afastado da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal após desentendimento com o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, a magistrada assinou uma nota na qual criticava o “coronelismo judiciário”, caso se comprovasse que Barbosa tivesse forçado a saída do juiz. Na época, o Tribunal negou qualquer problema entre os dois.

Apoio

Em janeiro, quando os desembargadores começaram a avaliar se abriam o processo contra Kenarik, diversas instituições sociais manifestaram apoio à juíza. O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) afirmou em nota esperava que o Órgão Especial decidisse pela improcedência da representação e reconhecesse “o importante papel que a desembargadora Kenarik desempenha no Tribunal em busca da efetivação de direitos das pessoas mais vulneráveis e dos valores mais nobres da justiça.”

A Pastoral Carcerária criticou a postura do Judiciário de manter pessoas presas por um tempo maior do que a pena recebida. “A situação kafkiana desses réus só revela o absurdo do nosso sistema de justiça criminal, em que um recurso de apelação demora tanto para ser julgado que a pessoa corre o risco de cumprir integralmente a pena antes mesmo do resultado dessa apelação, que poderia reduzir a sua pena ou absolvê-lo da acusação”, disse a Pastoral Carcerária, em nota pública.

“Tudo indica que as decisões da Sra. Kenarik, questionadas na Corregedoria, embora legais e justas, confrontam-se com a mentalidade punitivista e encarceradora de outros membros do Tribunal de Justiça de São Paulo – infelizmente, muito presente em todo o nosso sistema de justiça criminal”, continua o texto. “Observa-se que alguns operadores do Direito, em total desacordo com os direitos e garantias fundamentais, promovem obstinadamente a pena de prisão como panaceia dos problemas sociais, dentre eles a violência urbana. Fazem da prisão regra, quando ela deveria ser exceção (ultima ratio), como prevê o nosso ordenamento jurídico.”

O Instituto de Defesa dos Direitos Humanos (IDDH) manifestou, também em nota, “irrestrita solidariedade à desembargadora”. Segundo o texto, “Kenarik é exemplo de magistrada comprometida com os direitos humanos e com a luta contra a expansão do Estado Penal, motivo pelo qual nos colocamos na torcida para que tão despropositado processo disciplinar se mostre infrutífero.”

O Brasil apresenta a maior taxa de crescimento da população prisional, que atualmente é a quarta maior do mundo, com 607.731 pessoas presas em 2014, de acordo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça. O total só é inferior à quantidade de presos nos Estados Unidos, na China e na Rússia.

Levando em conta dos dados do Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês), do King’s College, de Londres, a situação seria ainda mais alarmante: com 715,6 mil pessoas presas, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos (com 2,2 milhões) e China (1,7 milhão).

Conheça mais sobre o caso de Kenarik no vídeo produzido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM):

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