Pioneiros da luta antirracismo avaliam que discriminação continua

Advogado e vice-presidente de instituto dedicado à mulher negra apontam avanços no judiciário e na saúde, e enumeram o que é preciso melhorar

Caso. 1. Um homem negro e alto desloca-se por bairros de classe alta de São Paulo com um carro novo em folha. Entra em várias empresas e residências com uma pasta vazia, supostamente misteriosa, e sai dos locais com a pasta cheia.
A polícia, desconfiada, resolve seguir o homem. No endereço de sua casa, descobre outros dois carros novos e nota uma movimentação supostamente estranha. Não há dúvidas: o homem deve ser “abordado”, como manda o jargão policial, e levado à delegacia. No Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), é submetido a uma sessão de tortura, da qual é salvo por seu advogado.
A polícia, desconfiada, resolve seguir o homem. No endereço de sua casa, descobre outros dois carros novos e nota uma movimentação supostamente estranha. Não há dúvidas: o homem deve ser “abordado”, como manda o jargão policial, e levado à delegacia. No Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), é submetido a uma sessão de tortura, da qual é salvo por seu advogado.
O homem “suspeito” é um fiscal do INSS, órgão da Previdência Social que na época, fim dos anos 80, nem levava esse nome. O conteúdo de sua pasta preta não era fruto de roubo, mas papéis coletados em ações de fiscalização. A movimentação suspeita em sua casa nada mais era que dois irmãos que estavam abrindo uma empresa.
Caso. 2. Um homem negro está encostado em um carro novo em folha no estacionamento de um supermercado em Osasco, região metropolitana de São Paulo. De repente, chega um grupo que logo mostra armas e provoca correria.
O rapaz, de 39 anos, tenta se livrar como pode dos seguranças de um supermercado que, não se sabe muito bem por quais evidências, definiram que ele roubou o veículo. Depois de uma sessão de torturas de 20 minutos em que “neguinho” foi palavra comum, chegam os policiais.
Os espancamentos param, mas não o interrogatório. Na cabeça dos envolvidos, não é possível que um negro tenha um carro novo. E mais: que não tenha nenhuma “passagem” pela polícia. Desde que comprou o veículo, o funcionário de uma universidade pública é parado com frequência para “abordagens”, mas nunca imaginou que se pudesse chegar a esse ponto. É agosto de 2009.

Os dois fatos acima, com vinte anos de intervalo entre si, evidenciam duas coisas: a primeira é a existência do racismo. A segunda é a persistência do problema. Ainda que vários integrantes de movimentos antirracistas indiquem a melhoria nos últimos anos, o consenso é de que a discriminação racial continua.

Antônio Carlos Arruda, advogado especialista em políticas públicas, foi quem socorreu o fiscal do INSS no fim da década de 80. Ele avalia que a grande diferença é que, de alguma maneira, o Estado passou a assumir o papel que lhe cabe, e com isso há um número muito maior de ações contra a discriminação. Na época, conta, o Ministério Público era resistente a processos do gênero, situação que hoje está bastante transformada, com promotores e procuradores especializados no tema.

“O mais importante hoje é informar a população sobre seus direitos. E as formas de ação”, afirma.

Antônio Carlos Arruda foi um dos primeiros integrantes do Instituto Geledés (pronuncia-se Gueledés), que desde 1988 atua nas questões relacionadas ao racismo com foco na mulher negra.

As fundadoras do Geledés militavam nos movimentos feminista e antirracismo, e logo se deram conta de como era difícil juntar os dois assuntos. Sônia Maria Nascimento, vice-presidente do instituto, conta que as mulheres não queriam debater a questão de raça, e os negros não queriam debater a questão de gênero.

Na ocasião, Antônio Carlos Arruda buscou, com a análise de alguns casos, mostrar como o racismo estava presente nas decisões do Judiciário. Com isso foi possível pedir mais efetividade nas ações do Ministério Público e mostrar a importância de que a Defensoria Pública focasse nos casos de negros.

Hoje, se na sociedade como um todo a perfeição está distante, há ao menos a compreensão de boa parte dos integrantes da Justiça de que é preciso punir os casos de racismo. E há a articulação de órgãos de governo na tentativa de extinguir a desigualdade racial.

Sônia Maria Nascimento comemora os avanços na área de saúde, com o reconhecimento da rede pública de que era preciso dar atenção especial aos casos em que os negros estão mais suscetíveis a desenvolver problemas, como hipertensão e anemia falciforme.

A vice-presidente do Geledés vê muitos avanços na questão do racismo nos últimos anos, como a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a elaboração de políticas públicas específicas. “Queremos sair da invisibilidade. Todos sabemos os efeitos maléficos do racismo e é preciso combater mesmo. Sofremos isso há 300 anos”, afirma.

Uma das mudanças para reverter o quadro, na avaliação dos especialistas, é a criação de políticas afirmativas na área de educação, em especial as cotas raciais. Sônia Maria Nascimento lembra que a exclusão dos negros da sala de aula foi reconhecida por emenda à Constituição de 1824. Ou seja, se a exclusão foi institucional, a reparação dos erros também deve ser.

“No Brasil, se você tem cor, não interessa a competência. Você conta nos dedos das mãos as exceções. E quando tem alguém, fazem questão de invisibilizar a raça, a cor da pessoa. Não deixam nossa comunidade ter heróis”, declara a vice-presidente do Geledés.

Antônio Carlos Arruda, que deixou o instituto na década de 90, estudou no exterior e depois que retornou foi convidado para presidir o Conselho Estadual da Comunidade Negra de São Paulo, entende que é fundamental responsabilizar os que promovem o racismo: “O Poder Judiciário, que é aquele que deve deter as decisões nesses conflitos, precisa ser provocado tanto na esfera penal quanto na jurídica, a reparação moral e a reparação material. Agora mesmo, há menos de dois meses, ganhei uma causa em uma ação parecida de violência policial”, finaliza.