Cotas: diplomados ingressam no mercado de trabalho

Mesmo sem determinação legal cerca de 60 universidades atualmente adotam alguma forma de ação afirmativa como as cotas para os negros no ensino superior

Professor Kabengele Munanga (USP), considera as leis na área do ensino avanços importantes, mas alerta para o fato de continuarem sendo um ponto de partida (Imagem/INEC-Instituto Nacional de Educação e Cultura)

A Constituição de 1988 criminalizou a discriminação racial, mas não garantiu o combate ao racismo ou mesmo políticas para a promoção da cidadania negra. Para os movimentos sociais, o mês da Consciência Negra, novembro, é apenas uma oportunidade para avaliar os avanços e planejar como prosseguir na luta desta população. 

Desde que comunidades africanas foram trazidas brutalmente escravizadas para o país, movimentos e rebeliões seguem em busca de liberdade, dignidade, direito a vida e ao trabalho. Mesmo a abolição da escravatura, uma conquista dos afrodescendentes, não foi suficiente para garantir acesso a educação, saúde e moradia. As reivindicações negras atravessaram décadas e sistemas políticos. Dos primeiros anos da República à redemocratização do país, passando pela ditadura militar. 

Em 2001, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou em Durban, na África do Sul, a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas. Todos os Estados membros da ONU foram orientados a implementar as chamadas políticas de ação afirmativa. 

Em 2003, o governo federal criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), considerado um marco institucional na América Latina. Mesmo antes da Seppir as universidades começaram a implementar cotas para estudantes negros por entender que diversos mecanismos de discriminação racial impediam o ingresso dos jovens afrodescendentes ao ensino superior.

Mesmo sem determinação legal – a lei de cotas ainda tramita no Congresso Nacional – cerca de 60 universidades atualmente adotam alguma forma de ação afirmativa, segundo estimativas da Seppir. Nessas instituições, a presença do estudante negro tem saído do patamar de 2% da comunidade acadêmica para até 30%. Uma nova geração de jovens negros e negras com diploma universitário no currículo começa a entrar no mercado de trabalho. 

Primeiro da família

Eduardo Alves da Silva, 25 anos, faz parte dessa geração de cotistas. Estudante do último semestre de Pedagogia da Universidade de Brasília (UnB), ele é o primeiro da família a ingressar no ensino superior. Morador de Planaltina, uma das regiões do Distrito Federal com maior índice de homicídios de jovens negros, Silva sobreviveu às discriminações sofridas na escola. O racismo na sala de aula, aliás, é apontando pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) como uma das principais causas de evasão de estudantes negros no Brasil.

“Pessoalmente, o sistema de cotas não só significa uma contribuição fundamental para meu ingresso na universidade, como para a minha identidade e auto-estima”, conta Eduardo, mais conhecido como Dudu, músico da banda Gilbertos Comem Bacon, grupo que mistura ritmos como rock, hardcore, maracatú e samba, com forte influência da cultura negra.

“Quero seguir carreira acadêmica. Penso em fazer mestrado e dar aulas. Já fiz estágios e participo de vários grupos de estudo na área de Filosofia e Serviço Social. Temos que avançar muito ainda, principalmente nos mecanismos para garantir que os estudantes cotistas permaneçam na universidade. Quase 90% deles são de famílias de baixa renda e têm dificuldade para estudar sem trabalhar”, alerta o futuro pedagogo, para quem as leis que determinam o ensino da história e cultura afro e indígena (Lei 10639/03 e Lei 11.465/08) oferecem um campo de trabalho importante para os cotistas.

Fóruns de professores e escolas têm buscado nos pesquisadores negros e negras orientações e informações para cumprir as leis. O ensino da cultura afrobrasileira foi um dos principais temas debatidos na 2ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapri), realizada em junho deste ano.

Educadores negros e negras de todo o país chegaram a cobrar do Ministério da Educação (MEC) suspensão no repasse de verbas para municípios que não cumprem a lei nas escolas. O diretor da Secretaria de Diversidade, Alfabetização e Educação Continuada (Secad), André Lázaro, argumentou que o MEC tem buscado sensibilizar os municípios, enviando materiais didáticos adequados e oferecendo cursos para professores. Na avaliação dele, a suspensão de repasses financeiros poderia ter efeito contrário e prejudicar o diálogo com as prefeituras.

O professor da Universidade de São Paulo (USP), Kabengele Munanga, considera as leis na área do ensino avanços importantes, mas alerta para o fato de continuarem sendo um ponto de partida. “Muitos meios educativos resistem, acham que o governo está criando falsos problemas.

É a ideia de que nossa cultura e história são mestiças e por isso não é preciso estudar a história do negro e da África. Estudar já seria uma racialização do Brasil. Essa resistência atrasa o processo”, ressalta Munanga, imigrante africano, desde a década de 80 no Brasil. 

“O modelo brasileiro de formação de educadores ainda é muito eurocêntrico. A história ensinada sempre foi a dos grandes colonizadores. Precisamos formar educadores para entender a diversidade, a importância e as contribuições da África para o Brasil. Temos que produzir cada vez mais materiais didáticos divorciados da historiografia oficial. Não estamos no ponto zero, mas nossa produção e ação ainda são insuficientes para um funcionamento pleno da lei.”, finaliza. 

Juliana Cézar Nunes é jornalista, faz parte da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira) do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal. 

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