Em São Paulo

Movimento negro faz campanha para Natal de cooperativa de catadores

Doações serão revertidas para festa de fim de ano e montagem de cestas básicas e presentes a 65 crianças

Arquivo Cooperativa/MNU
Arquivo Cooperativa/MNU
"Na festa nós falamos sobre a vida, sobre o meio ambiente e a importância dos pais dele, de cada catador nesse mundo", destaca a ex-presidenta da cooperativa

São Paulo – Já são 14 anos realizando a festa de Natal para as filhas e filhos de catadores da Cooperativa Granja Julieta, em São Paulo. Mas sua organizadora, a educadora e militante do Movimento Negro Unificado (MNU) Regina Lúcia dos Santos não tem dúvida de que a nova edição da confraternização, prevista para o próximo sábado (18), ocorre no momento “mais difícil” do país – e da cooperativa.

A pandemia de covid-19, que já tirou a vida de mais de 616 mil brasileiros, fez suas vítimas entre as famílias dos trabalhadores. As consequências da crise sanitária também atrapalharam o recolhimento de materiais, causando diminuição da renda dos cooperados que sobrevivem da reciclagem. Com menor rendimento e alta na inflação, a fome avançou, sem ser acompanhada de políticas públicas que pudessem minimizar a situação.

Ao longo dessa última década, era comum ouvir de Regina que o MNU e movimentos sociais como a Marcha das Mulheres Negras de São Paulo “só conseguiam fazer a festa porque contaram com a ajuda de muitas pessoas durante estes 10 anos”. Mas a campanha de arrecadação de fundos para o Natal das famílias da Cooperativa Granja Julieta tem uma emergência a mais em 2021, diante das novas dificuldades impostas. 

A campanha do MNU

O MNU calcula que pelo menos 65 crianças poderão ser beneficiadas com as doações – abertas para contribuição via PIX (confira no banner abaixo). O valor arrecadado será revertido para a realização de uma festa natalina, com aluguel de brinquedos, doces e salgados e equipamentos de proteção à covid-19. Assim como na montagem de cestas básicas de alimentos. 

“Temos a necessidade de fazer as cestas, em especial porque eles (catadores) têm passado por muitas necessidades. No ano passado eu e o Milton Barbosa (cofundador do MNU) não fomos (na distribuição das cestas). Porque ele é hipertenso, eu sou asmática, os dois com obesidade e idosos. Quem foi distribuir foi minha filha e amigos que ajudam muito. E ela falou ‘mãe, se você visse a felicidade das pessoas que receberam a cesta e o frango, você não ia acreditar’. Eles tiraram foto, mas ela falava ‘você não tem a dimensão da felicidade delas’. Então a gente vai fazer uma força para comprar de novo um frango grande porque, em geral, as famílias são grandes. A gente não compra peru e essas coisas porque são extremamente caros, mas comprando um frango grande acaba fazendo o mesmo efeito”, descreve Regina.

Resistência da cooperativa

Dizer que esse é o momento mais difícil da cooperativa não é pouca coisa diante da história do espaço, marcado por dois incêndios, mudanças forçadas e desvalorização do trabalho dos catadores por parte do poder público. O nome do empreendimento faz referência ao antigo endereço da cooperativa, área nobre no distrito de Santo Amaro, na zona sul, mas que depois de dois incêndios – que os catadores acreditam ter origem criminosa – foi realocado, em 2012, para o bairro do Socorro, na mesma região. De acordo com eles, o local era malvisto por estar em área nobre e ser uma barreira para interesses imobiliários.

No mesmo período, a cooperativa também perdeu parte significativa de sua produção. Durante a gestão do então prefeito Gilberto Kassab (2006-2013) restou apenas um dos três caminhões de recolhimento de resíduos que eram destinados ao espaço da Granja Julieta. O maior golpe, no entanto, ocorreu no ano passado, quando o empreendimento foi “tomado” pela prefeitura. Ele deixou de ser uma cooperativa e os catadores passaram a ser “prestadores de serviços”. Esse momento mais difícil é também “fúnebre”, nas palavras da ex-presidenta da cooperativa Mara Lúcia Sobral. 

“A pandemia, em que o mundo parou, as pessoas que moravam e viviam da rua, tanto o comércio como o catador, ficaram sem trabalho, renda, sem nada. E a gente, devido aos tributos, às exigências da prefeitura e à queda do material – porque as pessoas não estavam mais separando o material e nem atendendo ninguém em sua porta – fechamos a Granja Julieta. A pandemia foi trágica para catadores e ambulantes, mas para a cooperativa foi fúnebre”, conta Mara.

Queda na renda

Sem o sistema de cooperativa, os catadores passaram a auferir um rendimento menor. Antes, o lucro conseguido com a venda dos materiais recicláveis rendia, em média, de R$ 1,5 mil a R$ 1,8 mil por mês a 39 trabalhadores. “Hoje, o dinheiro recebido é bem menor. Eles são prestadores de serviço num setor extremamente explorado. Sem contar que não tem essa compreensão do papel social que a cooperativa desempenhava, que era de resgate da dignidade, da humanidade e da vida daquelas pessoas”, completa a educadora do MNU. 

Criada em 1996, a cooperativa nasceu do sentimento de Mara de acolher pessoas em situação de vulnerabilidade. Em especial, mulheres negras e mães, pessoas em situação de rua, egressos do sistema prisional e aqueles em tratamento contra o uso problemático de substâncias psicoativas. “Não adianta a sociedade só dizer ‘você não pode fazer parte dessa sociedade’. A gente precisa abrir espaço para que essas pessoas sejam incluídas com dignidade. E a dignidade vem com o trabalho, esse era o olhar da Granja Julieta”, explica. 

“Eu já tinha esse sentido comigo porque morei muito tempo nas ruas após o falecimento da minha mãe. E vi que nem todo mundo está perdido e ninguém que está na rua escolhe estar nas ruas, nas calçadas. A vida vai nos levando para algumas situações. Mas se a gente tiver uma oportunidade, se muitos tiverem uma oportunidade, eles conseguem virar o jogo. Então para mim o fim do cooperativismo é um eterno luto”, completa a ex-presidenta. 

Sonhar com o Natal

Na medida do possível, de acordo com o MNU, as famílias continuam recebendo a assistência do movimento. Mas os encontros de formação, que contribuíram para que muitas trabalhadoras voltassem a estudar e se empoderassem em sua condição, segundo Regina, até o momento ainda não puderam ser retomados no espaço. Em meio a tantas privações, a festa para as crianças – que no ano passado foi suspensa, por causa da pandemia – é a oportunidade das famílias, no mínimo, poderem sonhar com o Natal

“A importância da festinha, a vida toda foi não só as crianças receberem o presente. Não só você ter o bem material, não é só isso. A importância da festa para os filhos dos catadores é para que, com essa confraternização, essa solidariedade, eles entendam que fazem parte da sociedade. Que as pessoas se importam com a vida deles, com o trabalho dos pais deles. Lá nós falamos sobre a vida, sobre o meio ambiente e a importância dos pais dele, de cada catador nesse mundo”, ressalta Mara. 

A festa de Natal está marcada para o dia 18, às 13h, em um espaço cedido por uma organização social do Grajaú, onde a maioria das famílias reside. As doações para a campanha podem ser feitas em qualquer valor.